Contos brasileiros - Blog A CRÍTICA

"A liberdade de imprensa é a permissão de qualquer aleijado bater-se com um professor de esgrima." (Câmara Cascudo)

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Contos brasileiros

Pedro Malazarte - por Luís da Câmara Cascudo: 


Um casal de velhos possuía dois filhos homens, João e Pedro, este tão astucioso e vadio que o chamavam Pedro Malazarte. Como era gente pobre, o filho mais velho saiu para ganhar a vida e empregou-se numa fazenda onde o proprietário era rico e cheio de velhacarias, não pagando aos empregados porque fazia contratos impossíveis de cumprimento. João trabalhou quase um ano e voltou quase morto. 

O patrão tirara-lhe uma tira de couro desde o pescoço até o fim das costas e nada mais lhe dera. Pedro ficou furioso e saiu para vingar o irmão. Procurou o mesmo fazendeiro e pediu trabalho. 

O fazendeiro disse que o empregava com duas condições; não enjeitar serviços e do que primeiro ficasse zangado tirava o outro uma tira de couro. Pedro Malazarte aceitou. 

No primeiro dia foi trabalhar numa plantação de milho. 

O patrão mandou que uma cachorrinha o acompanhasse. Só podia voltar quando a cachorra voltasse para casa. Pedro meteu o braço no serviço até meio-dia. A cachorrinha deitada na sombra nem se mexia. Vendo que era combinação Malazarte largou uma paulada na cachorra que esta saiu ganindo e correu até o alpendre da casa. O rapaz voltou e almoçou. Pela tarde nem precisou bater na cachorra. Fez o gesto e o bicho voou no caminho. 

No outro dia o fazendeiro escolheu outra tarefa. Mandou-o limpar a roça de mandioca. Pedro arrancou toda plantação, deixando o terreno completamente limpo.

Quando foi dizer ao patrão o que fizera este ficou feio.
- Zangou-se, meu amo?

- Não senhor, - respondeu o patrão.
No outro dia disse que Pedro trouxera o carro de bois carregado de pau sem nós. Malazarte cortou quase todo o bananal, explicando que bananeira é pau que não tem nó. O patrão ficou frio:

- Zangou-se, meu amo?

- Não senhor.

No outro dia mandou-o levar o carro, com a junta de bois, para dentro de uma sala numa casinha perto, sem passar pela porta. E para melhor atrapalhar, fechou a porta e escondeu a chave.

Malazarte agarrou um machado e fez o carro em pedaços, matou os bois, esquartejou-os e sacudiu, carnes e madeiras, pela janela, para dentro da sala. 

O patrão, quando viu, ficou preto:

- Zangou-se, meu amo?

- Não senhor.

Mandou vender na feira um bando de porcos. Malazarte levou os porcos, cortou as caudas e vendeu-os todos por um bom preço. Voltando enterrou os rabinhos num lamaçal e chegou em casa gritando que a porcada esta atolada no lameiro. O
patrão foi ver e deu o desespero. Malazarte sugeriu cavar com duas pás. Correu para casa e pediu à dona que lhe entregasse dois contos de réis. A velha não queria mas o rapaz para certificá-la, perguntava ao patrão por gestos se devia levar um ou dois, e mostrava os dedos. Ante aos gritos do amo, a velha entregou
o dinheiro ao Pedro. Voltou para o lameiro e começou a puxar a cauda de cada porco que dizia estar enterrado. Ia ficando com todas na mão. 

O patrão ficou suando mas não deu mostras de zanga. E Pedro ainda negou que tivesse recebido dinheiro.

Vendo que ficava pobre com aquele empregado, o fazendeiro resolveu matá-lo o mais depressa possível, de um modo que não o levasse à justiça. Disse que andava um ladrão rondando o curral e deviam vigiar, armados, para prender ou afugentar a tiros. A idéia era atirar em Malazarte e dizer que se tinha
enganado, supondo-o um malfeitor. De noite o fazendeiro foi para o curral e Pedro devia substituí-lo ao primeiro cantar do galo. Quando o galo cantou, Malazarte acordou a velha e disse que o marido a esperava no curral, e que levasse a outra espingarda, porque ele, Pedro, ia fazer o cerco pelo outro lado.

A velha apanhou a carabina e foi, sendo morta pelo fazendeiro com um tiro certo de que abatia, pelo vulto, o atrevido criado. Assim que a velha caiu, Pedro apareceu chorando e acusando o amo. Este, assombrado pagou muito dinheiro para
não haver conhecimento da justiça e ofereceu ainda mais dinheiro se o Malazarte se fosse embora, sem mais outra proeza. 

O rapaz aceitou e voltou rico para casa dos pais.


A ADIVINHA DO AMARELO

Um rei tinha uma filha tão inteligente que decifrava imediatamente todos os problemas que lhe davam. Ficou com essa habilidade, muito orgulhosa, e disse que se casaria com o homem que lhe desse uma adivinhação que ela não descobrisse a explicação dentro de três dias. Vieram rapazes de toda parte e nenhum conseguiu vencer a princesa que mandou matar os candidatos vencidos.
Bem longe da cidade morava uma viúva com um filho amarelo e doente, parecendo mesmo amalucado. O amarelo teimou em vir ao palácio do rei apresentar uma adivnha à princesa, apesar de rogos de sua mãe que o via degolado como sucedera a tantos outros.
Saiu ele de casa trazendo em sua companhia uma cachorrinha chamada Pita e um bolo de carne, envenenado, que lhe dera sua própria mãe. Andou, andou, andou, até que desconfiando do bolo o deu à Pita. Esta morreu logo. O amarelo, muito triste, jogou a cachorrinha no meio do campo e os urubus desceram para comê-la. Sete urubus morreram também. O amarelo com fome, atirou com uma pedra em uma rolinha, mas errou e matou uma asa branca. Apanhou-a e sem deixar de andar ia pensando como podia comer sua caça quando avistou uma casinha. Era uma capela abandonada há muito anos. O amarelo entrou e aproveitando a madeira do altar fez uma fogueira e assou o pássaro, almoçando muito bem. Ao sair, viu que descia na água do rio um burro morto, coberto de urubus. Estando com sede, encontrou um pé de gravatá, com água nas folhas e bebeu a fartar. Quase ao chegar à cidade reparou em um jumento que escavava o chão com insistência. O amarelo foi cavar também e descobriu uma panela cheia de moedas de ouro. Chegando à cidade, procurou o palácio do rei e disse que tinha uma adivinhação para a princesa. Marcaram o dia, e o amarelo, diante de todos, disse:
Saí de casa com massa e Pita
A Pita matou a massa
E a massa matou a Pita
Que também a sete matou
Atirei no que vi
Fui matar o que não vi
Foi com madeira santa
Que assei e comi
Um morto vivos levava
Bebi água, não do céu
O que não sabia a gente
Sabia um simples jumento
Decifre para seu tormento
A princesa pediu os três dias para decifrar e o amarelo ficou residindo no palácio, muito bem tratado. Pela noite, a princesa mandou uma criada sua, bem bonita, tentar o amarelo para que lhe dissesse como era a adivinhação. O amarelo compreendeu tudo e foi logo dizendo:
- Só direi se você me der a sua camisa.
Vai a moça e deu a camisa ao amarelo, que contou muita história mas não explicou a adivinhação. A princesa, vendo que a criada nada conseguira, mandou a segunda e houve a mesma cousa, ficando o amarelo com outra camisa. Na última noite, a princesa procurou o amarelo para saber o segredo. O rapaz pediu a camisa e a princesa não teve outro remédio senão a entregar. No outro dia, diante da corte, a princesa explicou a adivinhação:
- Massa era o bolo que a cachorra Pita matou porque comeu e foi morta pelo bolo, matando envenenados os sete urubus. A rolinha escapara da pedrada mas a asa branca morrera sem que o caçador a tivesse visto. Assou-a com madeira que guardara a hóstia santa. Um cadáver de burro levava, rio abaixo, uma nuvem de urubus vivos. A água que se conservava entre as folhas do gravatá, matara a sede do amarelo. O que não sabia o povo inteligente, sabia um jumento que cavava ouro ao pé de uma árvore.
Era tudo. Bateram muita palma, mas o amarelo disse logo:
- O fim dessa adivinha é fácil e eu vou dizer logo,
antes que morra degolado!
- Quando neste palácio entrei
Três rolinhas encontrei
Três peninhas lhes tirei
E agora mostrarei…
E foi puxando a camisa da primeira criada e mostrando. Fez o mesmo com a da segunda. Quando tirou a camisa da princesa, esta correu para ele, dizendo:
- Não precisa mostrar a terceira pena! Eu disse a adivinhação porque você me ensinou, e me ensinou porque é meu noivo…
Casaram e foram muito felizes.
(CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura oral no Brasil)

ASSOMBRAMENTO - História do sertão

Afonso Arinos

À beira do caminho das tropas, num tabuleiro grande, onde cresciam a canela-d'ema e o pau-santo, havia uma tapera. A velha casa assombrada, com grande escadaria de pedra levando ao alpendre, não parecia desamparada. O viandante a avistava de longe, com a capela ao lado e a cruz de pedra lavrada, enegrecida, de braços abertos, em prece contrita para o céu. Naquele escampado onde não ria ao sol o verde escuro das matas, a cor embaçada da casa suavizava ainda mais o verde esmaiado dos campos.
E quem não fosse vaqueano naqueles sítios iria, sem dúvida, estacar diante da grande porteira escancarada, inquirindo qual o motivo por que a gente da fazenda era tão esquiva que nem ao menos aparecia à janela quando a cabeçada da madrinha da tropa, carrilhonando à frente dos lotes, guiava os cargueiros pelo caminho a fora.
Entestando com a estrada, o largo rancho de telha, com grandes esteios de aroeira e mourões cheios de argolas de ferro, abria-se ainda distante da casa, convidando o viandante a abrigar-se nele. No chão havia ainda uma trempe de pedra com vestígios de fogo e, daqui e dacolá, no terreno acamado e liso, esponjadouros de animais vagabundos.
Muitas vezes os cargueiros das tropas, ao darem com o rancho, trotavam para lá, esperançados de pouso, bufando, atropelando-se, batendo uns contra os outros as cobertas de couro cru; entravam pelo rancho adentro, apinhavam-se, giravam impacientes à espera da descarga até que os tocadores a pé, com as longas toalhas de crivo enfiadas no pescoço, falavam à mulada, obrigando-a a ganhar o caminho.
Por que seria que os tropeiros, ainda em risco de forçarem as marchas e aguarem a tropa, não pousavam aí? Eles bem sabiam que, à noite, teriam de despertar, quando as almas perdidas, em penitência, cantassem com voz fanhosa a encomendação. Mas o cuiabano Manuel Alves, arrieiro atrevido, não estava por essas abusões e quis tirar a cisma da casa mal-assombrada.
Montado em sua mula queimada frontaberta, levando adestro seu macho crioulo por nome Fidalgo — dizia ele que tinha corrido todo este mundo, sem topar coisa alguma, em dias de sua vida, que lhe fizesse o coração bater apressado de medo. Havia de dormir sozinho na tapera e ver até onde chegavam os receios do povo.
Dito e feito.
Passando por aí de uma vez, com sua tropa, mandou descarregar no rancho com ar decidido. E enquanto a camaradagem, meio obtusa com aquela resolução inesperada, saltava das selas ao guizalhar das rosetas no ferro batido das esporas; e os tocadores, acudindo de cá e de lá, iam amarrando nas estacas os burros, divididos em lotes de dez, Manuel Alves, o primeiro em desmontar, quedava-se de pé, recostado a um mourão de braúna, chapéu na coroa da cabeça, cenho carregado, faca nua aparelhada de prata, cortando vagarosamente fumo para o cigarro.
Os tropeiros, em vaivém, empilhavam as cargas, resfolegando ao peso. Contra o costume, não proferiram uma jura, uma exclamação; só, às vezes, uma palmada forte na anca de algum macho teimoso. No mais, o serviço ia-se fazendo e o Manuel Alves continuava quieto.
As sobrecargas e os arrochos, os buçais e a penca de ferraduras, espalhados aos montes; o surrão da ferramenta aberto e para fora o martelo, o puxavante e a bigorna; os embornais dependurados; as bruacas abertas e o trem de cozinha em cima de um couro; a fila de cangalhas de suadouro para o ar, à beira do rancho, — denunciaram ao arrieiro que a descarga fora feita com a ordem do costume, mostrando também que à rapaziada não repugnava acompanhá-lo na aventura.
Então, o arrieiro percorreu a tropa, correndo o lombo dos animais para examinar as pisaduras; mandou atalhar à sovela algumas cangalhas, assistiu à raspagem da mulada e mandou, por fim, encostar a tropa acolá, fora da beira do capão onde costumam crescer as ervas venenosas.
Dos camaradas, o Venâncio lhe fora malungo de sempre. Conheciam-se a fundo os dois tropeiros, desde o tempo em que puseram o pé na estrada pela primeira vez, na era da fumaça, em trinta e três. Davam de língua às vezes, nos serões de pouso, um pedação de tempo, enquanto os outros tropeiros, sentados nos fardos ou estendidos sobre os couros, faziam chorar a tirana com a toada doída de uma cantilena saudosa.
Venâncio queria puxar a conversa para as coisas da tapera, pois viu logo que o Manuel Alves, ficando aí, tramava alguma das dele.
— O macho lionanco está meio sentido da viagem, só Manuel.
— Nem por isso. Aquele é couro n'água. Não é com duas distâncias desta que ele afrouxa.
— Pois olhe, não dou muito para ele urrar na subida do morro.
— Este? Não fale!
— Inda malhando nesses carrascos cheios de pedra, então é que ele se entrega de todo.
— Ora!
— Vossemecê bem sabe: por aqui não há boa pastaria; acresce mais que a tropa deve andar amilhada. Nem pasto, nem milho na redondeza desta tapera. Tudo que sairmos daqui, topamos logo um catingal verde. Este pouso não presta; a tropa amanhece desbarrigada que é um Deus nos acuda.
— Deixe de poetagens, Venâncio! Eu sei cá.
— Vossemecê pode saber, eu não duvido; mas na hora da coisa feia, quando a tropa pegar a arriar a carga pela estrada, é um vira-tem-mão e — Venâncio p'r'aqui, Venâncio p'r'acolá.
Manuel deu um muxoxo. Em seguida levantou-se de um surrão onde estivera assentado durante a conversa e chegou à beira do rancho, olhando para fora. Cantarolou umas trovas e, voltando-se de repente para o Venâncio, disse:
— Vou dormir na tapera. Sempre quero ver se a boca do povo fala verdade uma vez.
— Hum, hum! Está aí! Eia, eia, eia!
— Não temos eia nem peia. Puxe para fora minha rede.
— Já vou, patrão. Não precisa falar duas vezes.
E daí a pouco, veio com a rede cuiabana bem tecida, bem rematada por longas franjas pendentes.
— Que é que vossemecê determina agora?
— Vá lá à tapera enquanto é dia e arme a rede na sala da frente. Enquanto isso, aqui também se vai cuidando do jantar.
O caldeirão preso à rabicha grugrulhava ao fogo; a carne-seca no espeto e a camaradagem, rondando à beira do fogo lançava à vasilha olhares ávidos e cheios de angústias, na ansiosa expectativa do jantar. Um, de passagem atiçava o fogo, outro carregava o ancorote cheio de água fresca; qual corria a lavar os pratos de estanho, qual indagava pressuroso se era preciso mais lenha.
Houve um momento em que o cozinheiro, atucanado com tamanha oficiosidade, arremangou aos parceiros dizendo-lhes:
— Arre! Tem tempo, gente! Parece que vocês nuca viram feijão. Cuidem de seu que fazer, se não querem sair daqui a poder de tição de fogo!
Os camaradas se afastaram, não querendo turrar com cozinheiro em momento assim melindroso.
Pouco depois chegava o Venâncio, ainda a tempo de servir o jantar ao Manuel Alves.
Os tropeiros formavam roda, agachados, com os pratos acima dos joelhos e comiam valentemente.
— Então? perguntou Manuel Alves ao seu malungo.
— Nada, nada, nada! Aquilo por lá, nem sinal de gente!
— Uai! É estúrdio!
— E vossemecê pousa lá mesmo?
— Querendo Deus, sozinho, com a franqueira e a garrucha, que nunca me atraiçoaram.
— Sua alma, sua palma, meu patrão. Mas... é o diabo!
— Ora! Pelo buraco da fechadura não entra gente, estando bem fechadas as portas. O resto, se for gente viva, antes dela me jantar eu hei de fazer por almoçá-la. Venâncio, defunto não levanta da cova. Você há de saber amanhã.
— Sua alma, sua palma, eu já disse, meu patrão; mas, olhe, eu já estou velho, tenho visto muita coisa e, com ajuda de Deus, tenho escapado de algumas. Agora, o que eu nunca quis foi saber de negócio com assombração. Isso de coisa do outro mundo p'r'aqui mais p'r'ali — terminou o Venâncio, sublinhando a última frase com um gesto de quem se benze.
Manuel Alves riu-se e, sentando-se numa albarda estendida, catou uns gravetos do chão e começou a riscar a terra, fazendo cruzinhas, traçando arabescos.... A camaradagem, reconfortada com o jantar abundante, tagarelava e ria, bulindo de vez em quando no guampo de cachaça. Um deles ensaiava um rasgado na viola e outro — namorado, talvez, encostado ao esteio do rancho, olhava para longe, encarando a barra do céu, de um vermelho enfumaçado e, falando baixinho, co'a voz tremente, à sua amada distante...
II
Enoitara-se o escampado e, com ele, o rancho e a tapera. O rolo de cera, há pouco aceso e pregado ao pé direito do rancho, fazia uma luz fumarenta. Embaixo da tripeça, o fogo estalava ainda. De longe vinham aí morrer as vozes do sapo-cachorro que latia lá num brejo afastado, sobre o qual os vaga-lumes teciam uma trama de luz vacilante. De cá se ouvia o resfolegar da mulada pastando, espalhada pelo campo. E o cincerro da madrinha, badalando compassadamente aos movimentos do animal, sonorizava aquela grave extensão erma.

As estrelas, em divina faceirice, furtavam o brilho às miradas dos tropeiros que, tomados de langor, banzavam, estirados nas caronas, apoiadas as cabeças nos serigotes, com o rosto voltado para o céu.
Um dos tocadores, rapagão do Ceará, pegou a tirar uma cantiga. E pouco a pouco, todos aqueles homens errantes, filhos dos pontos mais afastados desta grande pátria, sufocados pelas mesmas saudades, unificados no mesmo sentimento de amor à independência, irmanados nas alegrias e nas dores da vida em comum, responderam em coro, cantando o estribilho. A princípio timidamente, as vozes meio veladas deixaram entreouvir os suspiros; mas, animando-se, animando-se, a solidão foi se enchendo de melodia, foi se povoando de sons dessa música espontânea e simples, tão bárbara e tão livre de regras, onde a alma sertaneja soluça ou geme, campeia vitoriosa ou ruge traiçoeira irmã gêmea das vozes das feras, dos roncos da cachoeira, do murmulho suave do arroio, do gorjeio delicado das aves e do tétrico fragor das tormentas. O idílio ou a luta, o romance ou a tragédia viveram no relevo extraordinário desses versos mutilados, dessa linguagem brutesca da tropeirada.
E, enquanto um deles, rufando um sapateado, gracejava com os companheiros, lembrando os perigos da noite nesse ermo consistório das almas penadas — outro, o Joaquim Pampa, lá das bandas do sul, interrompendo a narração de suas proezas na campanha, quando corria à cola da bagualada, girando as bolas no punho erguido, fez calar os últimos parceiros que ainda acompanhavam nas cantilenas o cearense peitudo, gritando-lhes:
— Ché, povo! Tá chegando a hora!
O último estribilho:
Deixa estar o jacaré:
A lagoa há de secar

expirou magoado na boca daqueles poucos, amantes resignados, que esperavam um tempo mais feliz, onde os corações duros das morenas ingratas amolecessem para seus namorados fiéis:
Deixa estar o jacaré: 
A lagoa há de secar

O tropeiro apaixonado, rapazinho esguio, de olhos pretos e fundos, que contemplava absorto a barra do céu ao cair da tarde, estava entre estes. E quando emudeceu a voz dos companheiros ao lado, ele concluiu a quadra com estas palavras, ditas em tom de fé profunda, como se evocasse mágoas longo tempo padecidas:
Rio Preto há de dar vau
Té pra cachorro passar!

— Tá chegando a hora!
— Hora de que, Joaquim?
— De aparecerem as almas perdidas. Ih! Vamos acender fogueiras em roda do rancho.
Nisto apareceu o Venâncio, cortando-lhes a conversa.
— Gente! O patrão já está na tapera. Deus permita que nada lhe aconteça. Mas vocês sabem: ninguém gosta deste pouso mal-assombrado.
— Escute, tio Venâncio. A rapaziada deve também vigiar a tapera. Pois nós havemos de deixar o patrão sozinho?
— Que se há de fazer? Ele disse que queria ver com os seus olhos e havia de ir só, porque assombração não aparece senão a uma pessoa só que mostre coragem.
— O povo diz que mais de um tropeiro animoso quis ver a coisa de perto; mas no dia seguinte, os companheiros tinham que trazer defunto para o rancho porque, dos que dormem lá, não escapa nenhum.
— Qual, homem! Isso também não! Quem conta um conto acrescenta um ponto. Eu cá não vou me fiando muito na boca do povo, por isso é que eu não gosto de pôr o sentido nessas coisas.
A conversa tornou-se geral e cada um contou um caso de coisa do outro mundo. O silêncio e a solidão da noite, realçando as cenas fantásticas das narrações de há pouco, filtraram nas almas dos parceiros menos corajosos um como terror pela iminência das aparições.
E foram-se amontoando a um canto do rancho, rentes uns aos outros, de armas aperradas alguns e olhos esbugalhados para o indeciso da treva; outros, destemidos e gabolas, diziam alto.
— Cá por mim, o defunto que me tentar morre duas vezes, isto tão certo como sem dúvida — e espreguiçavam-se nos couros estendidos, bocejando de sono.
Súbito, ouviu-se um gemido agudo, fortíssimo, atroando os ares como o último grito de um animal ferido de morte.
Os tropeiros pularam dos lugares, precipitando-se confusamente para a beira do rancho.
Mas o Venâncio acudiu logo, dizendo:
— Até aí vou eu, gente ! Dessas almas eu não tenho medo. Já sou vaqueano velho e posso contar. São as antas-sapateiras no cio. Disso a gente ouve poucas vezes, mas ouve. Vocês têm razão: faz medo.
E os paquidermes, ao darem com o fogo, dispararam, galopando pelo capão adentro.
III
Manuel Alves, ao cair da noite, sentindo-se refeito pelo jantar, endireitou para a tapera, caminhando vagarosamente.
Antes de sair, descarregou os dois canos da garrucha num cupim e carregou-a de novo, metendo em cada cano uma bala de cobre e muitos bagos de chumbo grosso. Sua franqueira aparelhada de prata, levou-a também enfiada no correão da cintura. Não lhe esqueceu o rolo de cera nem um maço de palhas. O arrieiro partira calado. Não queria provocar a curiosidade dos tropeiros. Lá chegando, penetrou no pátio pela grande porteira escancarada.
Era noite.
Tateando com o pé, reuniu um molho de gravetos secos e, servindo-se das palhas e da binga, fez fogo. Ajuntou mais lenha arrancando paus de cercas velhas, apanhando pedaços de tábua de peças em ruína, e com isso, formou uma grande fogueira. Assim alumiado o pátio, o arrieiro acendeu o rolo e começou a percorrer as estrebarias meio apodrecidas, os paióis, as senzalas em linha, uma velha oficina de ferreiro com o fole esburacado e a bigorna ainda em pé.
— Quero ver se tem alguma coisa escondida por aqui. Talvez alguma cama de bicho do mato.
E andava pesquisando, escarafunchando por aquelas dependências de casa nobre, ora desbeiçadas, sítio preferido das lagartixas, dos ferozes lacraus e dos caranguejos cerdosos. Nada, nada: tudo abandonado!
— Senhor! Por que seria? — inquiriu de si para si o cuiabano e parou à porta de uma senzala, olhando para o meio do pátio onde uma caveira alvadia de boi-espáceo, fincada na ponta de uma estaca, parecia ameaçá-lo com a grande armação aberta.
Encaminhou para a escadaria que levava ao alpendre e que se abria em duas escadas, de um lado e de outro, como dois lados de um triângulo, fechando no alpendre, seu vértice. No meio da parede e erguida sobre a sapata, uma cruz de madeira negra avultava; aos pés desta, cavava-se um tanque de pedra, bebedouro do gado da porta, noutro tempo.
Manuel subiu cauteloso e viu a porta aberta com a grande fechadura sem chave, uma tranca de ferro caída e um espeque de madeira atirado a dois passos no assoalho.
Entrou. Viu na sala da frente sua rede armada e no canto da parede, embutido na alvenaria, um grande oratório com portas de almofada entreabertas. Subiu a um banco de recosto alto, unido à parede e chegou o rosto perto do oratório, procurando examiná-lo por dentro, quando um morcego enorme, alvoroçado, tomou surto, ciciando, e foi pregar-se ao teto, donde os olhinhos redondos piscaram ameaçadores.
— Que é lá isso, bicho amaldiçoado? Com Deus adiante e com paz na guia, encomendando Deus e a Virgem Maria...
O arrieiro voltou-se, depois de ter murmurado as palavras de esconjuro e, cerrando a porta de fora, especou-a com firmeza. Depois, penetrou na casa pelo corredor comprido, pelo qual o vento corria veloz, sendo-lhe preciso amparar com a mão espalmada a luz vacilante do rolo. Foi dar na sala de jantar, onde uma mesa escura e de rodapés torneados, cercada de bancos esculpidos, estendia-se, vazia e negra.
O teto de estuque, oblongo e escantilhado, rachara, descobrindo os caibros e rasgando uma nesga de céu por uma frincha de telhado. Por aí corria uma goteira no tempo da chuva e, embaixo, o assoalho podre ameaçava tragar quem se aproximasse despercebido. Manuel recuou e dirigiu-se para os cômodos do fundo. Enfiando por um corredor que parecia conduzir à cozinha, viu, ao lado, o teto abatido de um quarto, cujo assoalho tinha no meio um montículo de escombros. Olhou para o céu e viu, abafando a luz apenas adivinhada das estrelas, um bando de nuvens escuras, roldando. Um outro quarto havia junto desse e o olhar do arrieiro deteve-se, acompanhando a luz do rolo no braço esquerdo erguido, sondando as prateleiras fixas na parede, onde uma coisa branca luzia. Era um caco velho de prato antigo. Manuel Alves sorriu para uma figurinha de mulher, muito colorida, cuja cabeça aparecia ainda pintada ao vivo na porcelana alva.
Um zunido de vento impetuoso, constringido na fresta de uma janela que olhava para fora, fez o arrieiro voltar o rosto de repente e prosseguir o exame do casarão abandonado. Pareceu-lhe ouvir nesse instante a zoada plangente de um sino ao longe. Levantou a cabeça, estendeu o pescoço e inclinou o ouvido, alerta; o som continuava, zoando, zoando, parecendo ora morrer de todo, ora vibrar ainda, mas sempre ao longe.
— É o vento, talvez, no sino da capela.
E penetrou num salão enorme, escuro. A luz do rolo, tremendo, deixou no chão uma réstia avermelhada. Manuel foi adiante e esbarrou num tamborete de couro, tombado aí. O arrieiro foi seguindo, acompanhando uma das paredes. Chegou ao canto e entestou com a outra parede.
— Acaba aqui — murmurou.
Três grandes janelas no fundo estavam fechadas.
— Que haverá aqui atrás? Talvez o terreiro de dentro. Deixe ver...
Tentou abrir uma janela, que resistiu. O vento, fora, disparava, às vezes, reboando como uma vara de queixada em redemoinho no mato.
Manuel fez vibrar as bandeiras da janela a choques repetidos. Resistindo elas, o arrieiro recuou e, de braço direito estendido, deu-lhes um empurrão violento. A janela, num grito estardalhaçante, escancarou-se. Uma rajada rompeu por ela adentro, latindo qual matilha enfurecida; pela casa toda houve um tatalar de portas, um ruído de reboco que cai das paredes altas e se esfarinha no chão.
A chama do rolo apagou-se à lufada e o cuiabano ficou só, babatando na treva.
Lembrando-se da binga sacou-a do bolso da calça; colocou a pedra com jeito e bateu-lhe o fuzil; as centelhas saltavam para a frente impelidas pelo vento e apagavam-se logo. Então, o cuiabano deu uns passos para trás, apalpando até tocar a parede do fundo. Encostou-se nela e foi andando para os lados, roçando-lhe as costas procurando o entrevão das janelas. Aí, acocorou-se e tentou de novo tirar fogo: uma faiscazinha chamuscou o isqueiro e Manuel Alves soprou-a delicadamente, alentando-a com a princípio, ela animou-se, quis alastrar-se, mas de repente sumiu-se. O arrieiro apalpou o isqueiro, virou-o nas mãos e achou-o úmido; tinha-o deixado no chão, exposto ao sereno, na hora em que fazia a fogueira no pátio e percorria as dependências deste.
Meteu a binga no bolso e disse:
— Espera, diaba, que tu hás de secar com o calor do corpo.
Nesse entremente a zoada do sino fez-se ouvir de novo, dolorosa e longínqua. Então o cuiabano pôs-se de gatinhas, atravessou a faca entre os dentes e marchou como um felino, sutilmente, vagarosamente, de olhos arregalados, querendo varar a treva. Súbito, um ruído estranho fê-lo estacar, arrepiado e encolhido como um jaguar que prepara o bote.
No teto soaram uns passos apressados de tamancos pracatando e uma voz rouquenha pareceu proferir uma imprecação. O arrieiro assentou-se nos calcanhares, apertou o ferro nos dentes e puxou da cinta a garrucha; bateu com o punho cerrado nos feixos da arma, chamando a pólvora aos ouvidos e esperou. O ruído cessara; só a zoada do sino continuava, intermitentemente.
Nada aparecendo, Manuel tocou para diante, sempre de gatinhas. Mas, desta vez, a garrucha, aperrada na mão direita, batia no chão a intervalos rítmicos, como a úngula de um quadrúpede manco. Ao passar junto ao quarto de teto esboroado, o cuiabano lobrigou o céu e orientou-se. Seguiu, então, pelo corredor a fora, apalpando, cosendo-se com a parede. Novamente parou ouvindo um farfalhar distante, um sibilo como o da refega no buritizal.
Pouco depois, um estrépito medonho abalou o casarão escuro e a ventania — alcatéia de lobos rafados — investiu uivando e passou à disparada, estrondando uma janela. Saindo por aí, voltaram de novo os austros furentes, perseguindo-se, precipitando-se, zunindo, gargalhando sarcasticamente, pelos salões vazios.
Ao mesmo tempo, o arrieiro sentiu no espaço um arfar de asas, um soído áspero de aço que ringe e, na cabeça, nas costas, umas pancadinhas assustadas... Pelo espaço todo ressoou um psiu, psiu, psiu... e um bando enorme de morcegos sinistros torvelinhou no meio da ventania.
Manuel foi impelido para a frente à corrimaça daqueles mensageiros do negrume e do assombramento. De músculos crispados num começo de reação selvagem contra a alucinação que o invadia, o arrieiro alapardava-se, eriçando-se-lhe os cabelos. Depois, seguia de manso, com o pescoço estendido e os olhos acesos, assim como um sabujo que negaceia.
E foi rompendo a escuridão à caça desse ente maldito que fazia o velho casarão falar ou gemer, ameaçá-lo ou repeti-lo, num conluio demoníaco com o vento, os morcegos e a treva.
Começou a sentir que tinha caído num laço armado talvez pelo maligno. De vez em quando, parecia-lhe que uma coisa lhe arrepelava os cabelos e uns animálculos desconhecidos perlustravam seu corpo em carreira vertiginosa. No mesmo tempo, um rir abafado, uns cochichos de escárnio pareciam acompanhá-lo de um lado e de outro.
— Ah! vocês não me hão de levar assim-assim, não — exclamava o arrieiro para o invisível. — Pode que eu seja onça presa na arataca. Mas eu mostro! Eu mostro!
E batia com força a coronha da garrucha no solo ecoante.
Súbito, uma luz indecisa, coada por alguma janela próxima, fê-lo vislumbrar um vulto branco, esguio, semelhante a uma grande serpente, coleando, sacudindo-se. O vento trazia vozes estranhas das socavas da terra, misturando-se com os lamentos do sino, mais acentuados agora.
Manuel estacou, com as fontes latejando, a goela constrita e a respiração curta. A boca semi-aberta deixou cair a faca: o fôlego, a modo de um sedenho, penetrou-lhe na garganta seca, sarjando-a e o arrieiro roncou como um barrão acuado pela cachorrada. Correu a mão pelo assoalho e agarrou a faca; meteu-a de novo entre os dentes, que rangeram no ferro; engatilhou a garrucha e apontou para o monstro; uma pancada seca do cão no aço do ouvido mostrou-lhe que sua arma fiel o traía. A escorva caíra pelo chão e a garrucha negou fogo. O arrieiro arrojou contra o monstro a arma traidora e gaguejou em meia risada de louco:
— Mandingueiros do inferno! Botaram mandinga na minha arma de fiança! Tiveram medo dos dentes da minha garrucha! Mas vocês hão de conhecer homem, sombrações do demônio!
De um salto, arremeteu contra o inimigo; a faca, vibrada com ímpeto feroz, ringiu numa coisa e foi enterrar a ponta na tábua do assoalho, onde o sertanejo, apanhado pelo meio do corpo num laço forte, tombou pesadamente.
A queda assanhou-lhe a fúria e o arrieiro, erguendo-se de um pulo, rasgou numa facada um farrapo branco que ondulava no ar. Deu-lhe um bote e estrincou nos dedos um como tecido grosso. Durante alguns momentos ficou no lugar, hirto, suando, rugindo.
Pouco a pouco foi correndo a mão cautelosamente, tateando aquele corpo estranho que seus dedos arrochavam! era um pano, de sua rede, talvez, que o Venâncio armara na sala da frente.
Neste instante, pareceu-lhe ouvir chascos de mofa nas vozes do vento e nos assovios dos morcegos; ao mesmo tempo, percebia que o chamavam lá dentro Manuel, Manuel, Manuel — em frases tartamudeadas. O arrieiro avançou como um possesso, dando pulos, esfaqueando sombras que fugiam.
Foi dar na sala de jantar onde, pelo rasgão do telhado, pareciam descer umas formas longas, esvoaçando, e uns vultos alvos, em que por vezes pastavam chamas rápidas, dançavam-lhe diante dos olhos incendidos.
O arrieiro não pensava mais. A respiração se lhe tornara estertorosa; horríveis contrações musculares repuxavam-lhe o rosto e ele, investindo as sombras, uivava:
— Traiçoeiras ! Eu queria carne para rasgar com este ferro ! Eu queria osso para esmigalhar num murro.
As sombras fugiam, esfloravam as paredes em ascensão rápida, iluminando-lhe subitamente o rosto, brincando-lhe um momento nos cabelos arrepiados ou dançando-lhe na frente. Era como uma chusma de meninos endemoniados a zombarem dele, puxando-o daqui, beliscando-o d'acolá, açulando-o como a um cão de rua.
O arrieiro dava saltos de ugre, arremetendo contra o inimigo nessa luta fantástica: rangia os dentes e parava depois, ganindo como a onça esfaimada a que se escapa a presa. Houve um momento em que uma coréia demoníaca se concertava ao redor dele, entre uivos, guinchos, risadas ou gemidos. Manuel ia recuando e aqueles círculos infernais o iam estringindo; as sombras giravam correndo, precipitando-se, entrando numa porta, saindo noutra, esvoaçando, rojando no chão ou saracoteando desenfreadamente.
Um longo soluço despedaçou-lhe a garganta num ai sentido e profundo e o arrieiro deixou cair pesadamente a mão esquerda espalmada num portal, justamente quando um morcego, que fugia amedrontado, lhe deu uma forte pancada no rosto. Então, Manuel pulou novamente para diante, apertando nos dedos o cabo da franqueira fiel; pelo rasgão do telhado novas sombras desciam e algumas, quedas, pareciam dispostas a esperar o embate.
O arrieiro rugiu:
— Eu mato! Eu mato! Mato! — e acometeu como de alucinado aqueles entes malditos. De um foi cair no meio das formas impalpáveis e vacilantes. Fragor medonho se fez ouvir; o assoalho podre cedeu barrote, roído de cupins, baqueou sobre uma coisa e desmoronava embaixo da casa. O corpo de Manuel, tragado pelo buraco que se abriu, precipitou-se e tombou lá embaixo. Ao mesmo tempo, um som vibrante de metal, um tilintar como de moedas derramando-se pela fenda uma frasqueira que se racha, acompanhou o baque do corpo do arrieiro.
Manuel lá no fundo, ferido, ensangüentado, arrastou-se ainda, cravando as unhas na terra como um ururau golpeado de morte. Em todo o corpo estendido com o ventre na terra, perpassava-lhe ainda uma crispação de luta; sua boca proferiu ainda: — "Eu mato ! Mato! Ma..." — e um silêncio trágico pesou sobre a tapera.
IV
O dia estava nasce-não-nasce e já os tropeiros tinham pegado na lida. Na meia luz crepitava a labareda embaixo do caldeirão cuja tampa, impelida pelos vapores que subiam, rufava nos beiços de ferro batido. Um cheiro de mato e de terra orvalhada espalhava-se com a viração da madrugada.
Venâncio, dentro do rancho, juntava, ao lado de cada cangalha, o couro, o arrocho e a sobrecarga. Joaquim Pampa fazendo cruzes na boca aos bocejos freqüentes, por impedir que o demônio lhe penetrasse no corpo, emparelhava os fardos, guiando-se pela cor dos topes cosidos aqueles. Os tocadores, pelo campo a fora, ecavam um para o outro, avisando o encontro de algum macho fujão. Outros, em rodeio, detinham-se no lugar em que se achava a madrinha, vigiando a tropa.
Pouco depois ouviu-se o tropel dos animais demandando o rancho. O cincerro tilintava alegremente, espantando os passarinhos que se levantavam das touceiras de arbustos, voando apressados. Os urus, nos capões, solfejavam à aurora que principiava a tingir o céu e manchar de púrpura e ouro o capinzal verde.
— Eh, gente! o orvalho 'stá cortando, êta! Que tempão tive briquitando co'aquele macho "pelintra". Diabo o leve! Aquilo é próprio um gato: não faz bulha no mato e não procura as trilhas, por não deixar rastro.
— E a "Andorinha"? Isso é que é mula desabotinada! Sopra de longe que nem um bicho do mato e desanda na carreira. Ela me ojerizou tanto que eu soltei nela um matacão de pedra, de que ela havia de gostar pouco.
A rapaziada chegava à beira do rancho, tangendo a tropa.
— Que é da giribita? Um trago é bom para cortar algum ar que a gente apanhe. Traze o guampo, Aleixo.
— Uma hora é frio, outra é calor, e vocês vão virando, cambada do diabo! — gritou o Venâncio.
— Largue da vida dos outros e vá cuidar da sua, tio Venâncio! Por força que havemos de querer esquentar o corpo: enquanto nós, nem bem o dia sonhava de nascer, já estávamos atolados no capinzal molhado, vossemecê tava aí na beira do fogo, feito um cachorro velho.
— Tá bom, tá bom, não quero muita conversa comigo não. Vão tratando de chegar os burros às estacas e de suspender as cangalhas. O tempo é pouco e o patrão chega de uma hora para a outra. Fica muito bonito se ele vem encontrar essa sinagoga aqui! E por falar nisso, é bom a gente ir lá. Deus é grande! Mas eu não pude fechar os olhos esta noite ! Quando ia querendo pegar no sono, me vinha à mente alguma que pudesse suceder a só Manuel. Deus é grande!
Logo-logo o Venâncio chamou pelo Joaquim Pampa, pelo Aleixo e mais o José Paulista.
Deixamos esses meninos cuidando do serviço e nós vamos lá.
Nesse instante, um molecote chegou com o café. A rapaziada cercou-o. O Venâncio e seus companheiros, depois de terem emborcado os cuités, partiram para a tapera.
Logo à saída, o velho tropeiro refletiu um pouco alto:
— É bom ficar um aqui tomando conta do serviço. Fica você, Aleixo.
Seguiram os três, calados, pelo campo a fora, na luz suave de antemanhã. Concentrados em conjeturas sobre a sorte do arrieiro, cada qual queria mostrar-se mais sereno, andando lépido e de rosto tranqüilo; cada qual, escondia do outro a angústia do coração e a fealdade do prognóstico.
José Paulista entoou uma cantiga que acaba neste estribilho:
A barra do dia ai vem!
A barra do sol também,
Ai!

E lá foram, cantando todos três, por espantar as mágoas. Ao entrarem no grande pátio da frente, deram com os restos da fogueira que Manuel Alves tinha feito na véspera. Sem mais detença, foram-se barafustando pela escadaria do alpendre, em cujo topo a porta de fora lhes cortou o passo. Experimentaram-na primeiro. A porta, fortemente especada por dentro, rinchou e não cedeu.
Forcejaram os três e ela resistiu ainda. Então, José Paulista correu pela escada abaixo e trouxe ao ombro um cambão, no qual os três pegaram e, servindo-se dele como de um aríete, marraram com a porta. As ombreiras e a verga vibraram aos choques violentos cujo fragor se foi evolumando pelo casarão adentro em roncos profundos.
Em alguns instantes o espeque, escapulindo do lugar, foi arrojado no meio do solho. A caliça que caía encheu de pequenos torrões esbranquiçados os chapéus dos tropeiros — e a porta escancarou-se.
Na sala da frente deram com a rede toda estraçalhada.
— Mau, mau, mau! — exclamou Venâncio não podendo mais conter-se. Os outros tropeiros, de olhos esbugalhados, não ousavam proferir uma palavra. Apenas apalparam com cautela aqueles farrapos de pano, malsinados, com certeza, ao contato das almas do outro mundo.
Correram a casa toda juntos, arquejando, murmurando orações contra malefícios.
— Gente, onde estará sô Manuel? Vocês não me dirão pelo amor de Deus? — exclamou o Venâncio.
Joaquim Pampa e José Paulista calavam-se perdidos em conjeturas sinistras.
Na sala de jantar, mudos um frente do outro, pareciam ter um conciliábulo em que somente se lhes comunicassem os espíritos. Mas, de repente, creram ouvir, pelo buraco do assoalho, um gemido estertoroso. Curvaram-se todos; Venâncio debruçou-se, sondando o porão da casa.
A luz, mais diáfana, já alumiava o terreiro de dentro e entrava pelo porão: o tropeiro viu um vulto estendido.
— Nossa Senhora ! Corre, gente, que sô Manuel está lá embaixo, estirado!
Precipitaram-se todos para a frente da casa, Venâncio adiante. Desceram as escadas e procuraram o portão que dava para o terreiro de dentro. Entraram por ele a fora e, embaixo das janelas da sala de jantar, um espetáculo estranho deparou-se-lhes:
O arrieiro, ensangüentado, jazia no chão estirado; junto de seu corpo, de envolta com torrões desprendidos da abóbada de um forno desabado, um chuveiro de moedas de ouro luzia.
— Meu patrão! Sô Manuelzinho! Que foi isso? Olhe seus camaradas aqui. Meu Deus! Que mandinga foi esta? E a ourama que alumia diante dos nossos olhos?!
Os tropeiros acercaram-se do corpo do Manuel, por onde passavam tremores convulsos. Seus dedos encarangados estrincavam ainda o cabo da faca, cuja lâmina se enterrara no chão; perto da nuca e presa pela gola da camisa, uma moeda de ouro se lhe grudara na pele.
— Sô Manuelzinho! Ai meu Deus! P'ra que caçar histórias do outro mundo! Isso é mesmo obra do capeta, porque anda dinheiro no meio. Olha esse ouro, Joaquim! Deus me livre!
— Qual, tio Venâncio — disse por fim José Paulista. — Eu já sei a coisa. Já ouvi contar casos desses. Aqui havia dinheiro enterrado e, com certeza, nesse forno que com a boca virada para o terreiro. Aí é que está. Ou esse dinheiro foi mal ganho, ou porque o certo é que almas dos antigos donos desta fazenda não podiam sossegar enquanto não topassem um homem animoso para lhe darem o dinheiro, com a condição de cumprir, por intenção delas, alguma promessa, pagar alguma dívida, mandar dizer missas; foi isso, foi isso! E o patrão é homem mesmo! Na hora de ver a assombração, a gente precisa de atravessar a faca ou um ferro na boca, p'r'amor de não perder a fala. Não tem nada, Deus é grande!
E os tropeiros, certos de estarem diante de um fato sobrenatural, falavam baixo e em tom solene. Mais de uma vez persignaram-se e, fazendo cruzes no ar, mandavam quem quer que fosse — "para as ondas do mar" ou "para as profundas, onde não canta galo nem galinha".
Enquanto conversavam iam procurando levantar do chão o corpo do arrieiro, que continuava a tremer. Às vezes batiam-se-lhe os queixos e um gemido entrecortado lhe arrebentava da garganta.
— Ah! Patrão, patrão! Vossemecê, homem tão duro, hoje tombado assim! Valha-nos Deus! São Bom-Jesus do Cuiabá! Olha sô Manuel, tão devoto seu! — gemia o Venâncio.
O velho tropeiro, auxiliado por Joaquim Pampa procurava, com muito jeito, levantar do chão o corpo do arrieiro sem magoá-lo. Conseguiram levantá-lo nos braços trançados em cadeirinha e, antes de seguirem o rumo do rancho, Venâncio disse ao José Paulista:
— Eu não pego nessas moedas do capeta. Se você não tem medo, ajunta isso e traz.
Paulista encarou algum tempo o forno esboroado, onde os antigos haviam enterrado seu tesouro. Era o velho forno para quitanda. A ponta do barrote que o desmoronara estava fincada no meio dos escombros. O tropeiro olhou para cima e viu, no alto, bem acima do forno o buraco do assoalho por onde caíra o Manuel.
— É alto deveras! Que tombo! — disse de si para si. — Que há de ser do patrão? Quem viu sombração fica muito tempo sem poder encarar a luz do dia. Qual! Esse dinheiro há de ser de pouca serventia. Para mim, eu não quero: Deus me livre; então é que eu tava pegado com essas almas do outro mundo! Nem é bom pensar!
O forno estava levantado junto de um pilar de pedra sobre o qual uma viga de aroeira se erguia suportando a madre. De cá se via a fila dos barrotes estendendo-se para a direita até ao fundo escuro.
José Paulista começou a catar as moedas e encher os bolsos da calça; depois de cheios estes, tirou do pescoço seu grande lenço de cor e, estendendo-o no chão o foi enchendo também; dobrou as pontas em cruz e amarrou-as fortemente. Escarafunchando os escombros do forno achou mais moedas e com estas encheu o chapéu. Depois partiu, seguindo os companheiros que já iam longe, conduzindo vagarosamente o arrieiro.
As névoas volateantes fugiam impelidas pelas auras da manhã; sós, alguns capuchos pairavam, muito baixos, nas depressões do campo, ou adejavam nas cúpulas das árvores. As sombras dos dois homens que carregavam o ferido traçaram no chão uma figura estranha de monstro. José Paulista, estugando o passo, acompanhava com os olhos o grupo que o precedia de longe.
Houve um instante em que um pé-de-vento arrancou ao Venâncio o chapéu da cabeça. O velho tropeiro voltou-se vivamente; o grupo oscilou um pouco, concertando os braços do ferido; depois, pareceu a José Paulista que o Venâncio lhe fazia um aceno: "apanhasse-lhe o chapéu".
Aí chegando, José Paulista arreou no chão o ouro, pôs na cabeça o chapéu de Venâncio e, levantando de novo a carga, seguiu caminho a fora.
À beira do rancho, a tropa bufava escarvando a terra, abicando as orelhas, relinchando à espera do milho que não vinha. Alguns machos malcriados entravam pelo rancho adentro, de focinho estendido, cheirando os embornais.
Às vezes ouvia-se um grito: — Toma, diabo! — e um animal espirrava para o campo à tacada de um tropeiro.
Quando lá do rancho se avistou o grupo onde vinha o arrieiro, correram todos. O cozinheiro, que vinha do olho-d'água com o odre às costas, atirou com ele ao chão e disparou também. Os animais já amarrados, espantando-se escoravam nos cabestros. Bem depressa a tropeirada cercou o grupo. Reuniram-se em mó, proferiram exclamações, benziam-se, mas logo alguém lhes impôs silêncio, porque voltaram todos, recolhidos, com os rostos consternados.
O Aleixo veio correndo na frente para armar a rede de tucum que ainda restava.
Foram chegando e José Paulista chegou por último. tropeiros olharam com estranheza a carga que este conduzia; ninguém teve, porém, coragem de fazer uma pergunta: contentaram-se com interrogações mudas. Era o sobrenatural, ou era obra dos demônios. Para que saber mais? Não estava naquele estado o pobre do patrão?
O ferido foi colocado na rede havia pouco armada. dos tropeiros chegou com uma bacia de salmoura; outro, correndo do campo com um molho de arnica, pisava a planta para extrair-lhe o suco. Venâncio, com pano embebido, banhava as feridas do arrieiro cujo corpo vibrava, então, fortemente.
Os animais olhavam curiosamente para dentro do rancho, afilando as orelhas.
Então Venâncio, com a fisionomia decomposta, numa apoiadura de lágrimas, exclamou aos parceiros:
— Minha gente! Aqui, neste deserto, só Deus Nosso Senhor! É hora, meu povo! — E ajoelhando-se de costas para o sol que nascia, começou a entoar um — "Senhor Deus, ouvi a minha oração e chegue a vós o meu clamor!" — E trechos de salmos que aprendera em menino, quando lhe ensinaram a ajudar a missa, afloram-lhe à boca.
Os outros tropeiros foram-se ajoelhando todos atrás do velho parceiro que parecia transfigurado. As vozes foram subindo, plangentes, desconcertadas, sem que ninguém compreendesse o que dizia. Entretanto, parecia haver uma ascensão de almas, um apelo fremente in excelsis, na fusão dos sentimentos desses filhos do deserto. Ou era, vez, a própria voz do deserto mal ferido com as feridas seu irmão e companheiro, o fogoso cuiabano.
De feito, não pareciam mais homens que cantavam: era um só grito de angústia, um apelo de socorro, que do seio largo do deserto às alturas infinitas: — "Meu coração está ferido e seco como a erva... Fiz-me como a coruja, que se esconde nas solidões!... Atendei propicio à oração do desamparado e não desprezeis a sua súplica..."
E assim, em frases soltas, ditas por palavras não compreendidas, os homens errantes exalçaram sua prece com as vozes robustas de corredores dos escampados. Inclinados para a frente, com o rosto baixado para terra, as mãos batendo nos peitos fortes, não pareciam dirigir uma oração humilde de pobrezinhos ao manso e compassivo Jesus, senão erguer um hino de glorificação ao "Agios Ischiros", ao formidável "Sanctus, Sanctus, Dominus Deus Sabaoth".
Os raios do sol nascente entravam quase horizontalmente no rancho, aclarando as costas dos tropeiros, esflorando-lhes as cabeças com fulgurações trêmulas. Parecia o próprio Deus formoso, o Deus forte das tribos e do deserto, aparecendo num fundo de apoteose e lançando uma mirada, do alto de um pórtico de ouro, lá muito longe, àqueles que, prostrados em terra, chamavam por Ele.
Os ventos matinais começaram a soprar mais fortemente, remexendo o arvoredo do capão, carregando feixes de folhas que se espalhavam do alto. Uma ema, abrindo as asas, galopava pelo campo... E os tropeiros, no meio de uma inundação de luz, entre o canto das aves despertadas e o resfolegar dos animais soltos que iam fugindo da beira do rancho, derramavam sua prece pela amplidão imensa.
Súbito, Manuel, soerguendo-se num esforço desesperado, abriu os olhos vagos e incendidos de delírio. A mão direita contraiu-se, os dedos crisparam-se como se apertassem o cabo de uma arma pronta a ser brandida na luta... e seus lábios murmuraram ainda, em ameaça suprema:
— Eu mato!... Mato!... Ma...
(Em O conto fantástico. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1959. Panorama do Conto Brasileiro, 8)


PEDRO, JOSÉ E JOÃO


Era uma vez um velho muito rico e viúvo que tinha três filhos bonitos e fortes. Quando nascia um deles o pai plantava uma árvore. Os três se fizeram homens e cada um possuía um cavalo, um cachorro, uma espada e o pé de pau.

Duma feita, chegando na idade de sair pelo mundo, o mais velho, Pedro, procurou o velho e pediu para deixar a casa.

- Pode sair. Quer minha bênção com pouco dinheiro ou minha maldição com muito dinheiro?

- Quero muito dinheiro, meu Pai. Bênção é luxo.

O pai deu muito dinheiro a ele, mandou selar o cavalo, afiar a espada e soltar o cachorro. Pedro montou e seguiu jornada, contente como quê. No fim de uns dias ouviu, lá longe, uma voz cantando:

- Tinga sala ó menga! Tinga sala ó menga!

Botou-se no rumo. Deu com um casarão cercado de alpendres. No meio do terreiro uma velha estava pilando café num pilão que era enorme. Pedro saltou e pediu arrancho. A velha olhou e disse:

- Eu deixo se o meu netinho amarrar o cavalo naquele fio de linha, e também o cachorro e a espada porque tenho muito medo...

Pedro desapeou e amarrou o cavalo no fio de linha que era um cabelo. A velha tirou outro fio da cabeça e sugigou o cachorro e com um terceiro cabelo inquiriu a espada.

- Entre, meu netinho!

Pedro entrou e foi servida uma ceia muito boa. Quando acabou a velha levou ele para o alpendre e disse:

- Meu netinho tem força? Quer brincar de queda-de-corpo comigo para distrair?

- Ora, minha avó, que idéia!

Assim que a velha o segurou, Pedro sentiu que ela podia com dez homens. Lutou, lutou e vendo que era subjugado, gritou:

- Me acode, meu cavalão! 

- Engrossa, engrossa, meu cabelão! - respondeu a velha.

O cavalo dava coices e bufava como uma fera mas não conseguiu quebrar o cabelo que se virava numa corrente de ferro. Pedro gritou:

- Me acode, meu cachorrão!

- Engrossa, engrossa, meu cabelão! E o cachorro não pôde acudir, preso numa corda forte como um cabo de linho. Pedro gritou, já cai-não-cai:

- Me acode, meu espadão!

- Engrossa, engrossa, meu cabelão! - e a espada não saiu da bainha porque o cabelo da feiticeira fez um emaranhado de fio de aço. Pedro caiu e a velha amarrou-o e sacudiu-o num alçapão onde estavam muitos cavaleiros que tinham sido vencidos pela velha.

Na manhã seguinte, José, o segundo filho, olhou para a árvore de Pedro e reparou que estava murcha. Procurou o pai imediatamente:

- Meu pai, Pedro está doente ou preso. Quero correr mundo e ir livrá-lo.

- Quer minha bênção com pouco dinheiro ou minha maldição com muito dinheiro?

- Dinheiro faz tudo. A bênção vem depois.

Sucedeu o mesmo. Teve o dinheiro, enchendo as bruacas. Selou o cavalo, meteu a espada na bainha, chamou o cachorro e largou-se na estrada.

Dias depois, tardinha, ouviu o pilão batendo e a voz cantando:

- Tinga sala ó menga! Tinga sala ó menga!

Tocou o cavalão no rumo e viu a mesma velha, pilando milho. Pediu arrancho e teve a mesma resposta. Aceitou os pedidos e amarrou o cavalo, o cachorro e a espada com fios de cabelo que a feiticeira deu. Entrou, jantou e a velha convidou-o para brincar de queda-de-corpo. José era forte como um touro e pegou a velha como quem pega uma boneca. A velha livrou-se e agarrou-se com mão de ferro. Principiou a briga feia. Lá para as tantas a velha foi derrubando José e este valeu-se da garganta, gritando pelo cavalo, pelo cachorro e pela espada, e não foi válido porque o cabelo da velha se transformara em correntes e fios de ferro puro. José caiu e a velha jogou-o no subterrâneo, como os outros.

Na manhã, João, o mais moço, viu a árvore de José toda murcha, com as folhas amarelas. Procurou o pai.
- Meu pai, estou na idade de correr mundo. A árvore de José está murcha, dizendo que ele está em perigo de morte. Quero sair também...

- Pode sair. Quer minha bênção com pouco dinheiro ou minha maldição com muito dinheiro?

- Quero sua bênção sem dinheiro. Não há ouro deste mundo que pague a bênção de um pai.

O pai deu mais dinheiro do que aos outros. João montou o cavalo, amarrou a espada na cintura e seguiu viagem, acompanhado pelo cachorro.

Andou, andou, andou. Numa tarde, ao sol se pôr, ouviu a pancada do pilão e a voz cantando:

- Tinga sala ó menga! Tinga sala ó menga!

Botou-se mais que depressa para a direção e encontrou a velha pilando arroz. Saltou e pediu descanso. A velha fez as propostas que tinha feito. João ficou desconfiado de um cabelo segurar um cavalo, um cachorro e uma espada. Desceu do animal, fingindo aceitar, e fez que amarrava o cavalo, o cachorro e a espada.

A velha levou-o para dentro e deu de jantar. Depois saíram para espairecer e convidou o rapaz para uma queda-de-corpo. João aceitou. Foram lá e foram cá, brigando no duro, mas a velha era forte como um leão. O rapaz notou que seria vencido bem depressa e pediu socorro:

- Me acuda, meu cavalão!

- Engrossa, engrossa, meu cabelão! O cabelo virou cadeia de ferro mas caiu no chão porque não estava segurando o pescoço do cavalo. Este voou para cima da velha, aos coices, seguido pelo cachorro e pela espada que acabaram com a velha em dois tempos, às dentadas e furadas.

Assim que a velha caiu e morreu, João ouviu um vento passar pela casa. Abriram-se todas as portas e saíram os prisioneiros, muito contentes agradecendo o favor que o rapaz lhes fizera. Os quartos estavam cheios até a cumeeira de ouro e todos disseram que João era dono de tudo.

Apareceram cavalos e os homens foram embora. Os três irmãos ficaram juntos, abraçados. Pedro então perguntou o que se devia fazer com o corpo da velha.

- Enterra-se, disse José.

- Queima-se, disse João.

- Resolveram queimar. Fizeram uma fogueira bem fornida e sacudiram a feiticeira dentro, atiçando o fogão que subiu, clareando tudo. De repente ouviu-se um estouro terrível que abalou a casa e os galhos das árvores vieram até o chão. Rebentara o fígado da velha e pularam fora três ovos, grandes e brancos como ovos de ema.

Os três irmãos dividiram os ovos. Embora tivessem comido muito bem, acharam gosto em comer os ovos. Foram para dentro e Pedro quebrou a casca do primeiro ovo.

Saiu uma moça bonita como os primores:

- Dê-me água, pelo amor de Deus! Água depressa! - pediu ela.

Pedro sem perder tempo entregou o coco cheio d' água. A moça bebeu e sorriu para ele. Sentou-se e explicou dizendo que ela era filha do rei e estava com duas irmãs, dentro dos ovos há mais de cem anos.

José quebrou logo o seu e viu aparecer a moça ainda mais bonita que a de Pedro:

- Dê-me água, pelas chagas de Cristo! Água mais-que-depressa!

José entregou o coco d' água e a moça se satisfez, quebrando o encanto.

João, por sua vez, partiu o ovo e a moça que estava dentro da casca era uma verdadeira santa de bonita. Muito mais do que as duas juntas. Parecia o sol. Bebeu água e ficou conversando com as irmãs e os três irmãos, todos muito alegres.

Resolveram casar logo que chegassem na cidade onde o pai das moças era rei. Montaram a cavalo e as moças numa liteira e seguiram jornada, deixando a casa amaldiçoada pegando fogo.

Na cidade do rei casaram e cada qual ficou em sua casa que era um palácio. João era o querido do sogro por ter desencantado e vencido a velha feiticeira que fizera prisioneiros muitos homens e tomara riquezas sem conta. As duas princesas e os maridos ficaram enciumadas e aborrecidas com a irmã e João, e começaram a tecer intrigas e armar tocaias para prender os dois com medo que o rei deixasse a coroa para o casal predileto, mas nada conseguiram e João herdou o reino, perdoando aos irmãos e cunhadas e sendo todos felizes.


(Informante: Lourença Maria da Conceição, São José de Mipibu. Rio Grande do Norte. CASCUDO, Luís da Câmara. Contos tradicionais do Brasil)

JOÃO, O VAQUEIRO QUE NÃO MENTIA

Versão narrada por José Ormindo dos Santos, em Alagoas, em junho de 1964, por Téo Brandão


lnzistia dois fazendeiros no sertão, casados. lntão, condo se encontraram dizia:

— lntão, cumo vai o seu vaqueiro?

— O meu vaqueiro vai bem.

(Sujeito safado, mentiroso, o outro dizia c’u patrão de João)

— Não, João, não. João é um homem. João não mente.

Ele dizia: — Mente.

— Mente? Bom.

— Um dia eu le mostro se João não mente.

Então, esse de lá tinha uma moça bonita, musculosa e coisa e tá. Saiu mais a filha, a mais bonita que tinha e aprontou-se pras banda da fazenda que trabalhava João. Foi pra lá e disse:

— Você vai saí lá e vai saí no pátio da casa de João e num vorte mais.

— Sim, sinhô.

A moça aprumou-se e danou-se no pátio.

João ‘tava tirando a sela do cavalo, condo deu fé, viu a moça e parou. Disse:

— Aquela moça veio perdida. Eu vou botar ela em casa e nun tiro a sela do cavalo aqui.

E condo ela chegou:

— Boa-tarde, João.

— Boa-tarde, moça. Que é que anda fazendo, anda perdida?

Disse: —Não.

— Nun anda perdida?

— Não. Saí dali, que dei aqui nessa fazenda, pensando que era a fazenda do meu pai.

— Não. Você ‘tá errada.

Disse: — Não, num estou errada, não.

— Então eu vou arrochar aqui a cia e vou ali ver uma sela pra montar no cavalo, pra botar você na sua casa.

Disse: — Vou nada

— Pruquê não vai? Eu num quero você aqui.

— Mais eu num vou.

Aí foi tomando logo a dereção de embocar na casa.

— Moça, num faça isso, não.

— O xente já ‘ta feito. E eu num vou mais pra casa. Meu pai me mata c’uma pisa. Se eu hei de morrer c’uma surra, fico aqui.

— Nada, e coisa e tá.

E por finá ficou a moça.

Bom. João, condo era todo fim de semana, que ia pra casa do patrão parava o cavalo acolá, virava o cavalo nas duas mãos e seguia para casa do patrão.

Chegava lá e dizia:

— Bom-dia. patrão.

— Bom-dia, João.

— Cumo vai o nosso gado, cumo está o nosso boi Leição?

— Patrão, o nosso gado vai tudo em paz. O boi Leição ‘stá bem.

— ‘tá certo.

Pela continuação do tempo a moça deu pra vomitar, essas coisa e tá e aí desejou comer a urêia do boi Leição.

Ele disse:

— Moça, aquele boi, não tem jeito, não. Eu num faço uma coisa dessa.

E ela insistindo, insistindo, insistindo...

Ela diz:

— Nada e coisa e tá, tire a urêia, eu só quero comer a urêia.

Disse:

— Se é d’eu tirar a urêia do boi, eu mato o boi.

Matou o boi, fez carne de só, ela provou logo um pedaço especiá, mandou logo pro pai e haja...

João pensava o que havéra de fazer na vida. E condo foi no fim da semana, ele disse:

— O jeito qu’eu tenho é largar uma mentira pru’ meu patrão.

Ele lá (o pai da moça já tinha reunido jazibande, escrivão, testemunha, juiz de direito. tudo.

Aqui montou no cavalo. Tinha um pé de baraúna, cuma daqui acolá. Riscou o cavalo, condo chegou no pé da baraúna.

— Bom-dia, patrão.

Ele mesmo respondeu:

— Bom-dia, João.

— Cumo está o nosso gado, cumo vai o nosso boi Leição?

João dizia:

— Patrão, o nosso gado vai bem. O nosso boi Leição ... Saiu-lhe um berruga na uréia e eu fiz um curativo na uréia do boi e o boi morreu.

Aqui disse ele:

— Mais João mentir?

Virava prá trás, virava pra trás, sentava o cavalo na porta e virava de novo pra lá.

— Bom-dia, patrão.

— Bom-dia, João.

— Cumo está o nosso gado, cumo vai o nosso boi Leição?

— Patrão, o nosso gado vai bem. O nosso boi Leição... Eu fazendo uma ração num rochedo de muita pedra, muito arto, de mandacaru, o boi escapuliu, quebrou o pescoço...

Aqui, João pensava e dizia: — Mas eu mentir a meu patrão!

Virava pra trás e coisa e tá.

Condo ele fez umas quatro ou cinco vez, disse:

— Eu vou agora na casa do meu patrão contar essa história cumo foi.

Chegou lá, riscou o cavalo e disse:

— Bom-dia, patrão (O João).

— Bom-dia, João.

— Cumo vai o nosso gado, cumo está o nosso boi Leição? Ele dixe:

O pobre de um vaqueiro
Que se vê no vasto sertão,
Vi umas bonitas forma
E umas delicadas feição,
Vi-me tão aperriado
Que matei o seu boi Leição.

Home mais aí a musga bradou, e coisa e tá... Foi urna grande festa. Pegaram o João e a moça do fazendeiro lá casaram e foram viver.

E então a ‘posta feita é que se João mentisse, o home lá perdia a fazenda. E como de fato não mentiu, e ele perdeu a fazenda. João foi pra fazenda do que levantou o farso do sogro, foi pra fazenda do sogro e ficaram vivendo lá, vizinho.


(Em Brandão, Téo. Seis contos populares do Brasil. Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Folclore; Maceió, Universidade Federal de Alagoas, 1982, p.119-121)


O Filho da Burra


Um casal teve um filho tão grande que era uma coisa por demais. Meses depois o homem e a mulher morriam e a criança foi criada por uma burra. O menino formou, botou corpo, e só o chamavam Filho da Burra.

Já grande, Filho da Burra foi ganhar a vida e empregou-se num reinado onde mandou fazer uma bengala de ferro. O ferreiro fez uma bengala da grossura de um braço e Filho da Burra quando experimentou dobrou o ferro como se fosse um fio de arame. Mandou fazer outra, mais grossa, que ficou do seu gosto.

Como o seu patrão não o podia sustentar, porque ele comia dois bois por dia e quatro sacas de farinha, o rapaz largou o emprego e saiu pelo mundo. Encontrou um homem arrancando pé de pau com raízes e tudo e rolando para um lado.

— Como você se chama?

— Me chamo Rola-Pau!

— Vamos ganhara  vida juntos?

— Vamos!

Saíram os dois e lá adiante viram outro camarada que empurrava as pedras como se fosse brinquedo, tirando todas do lugar.

— Como se chama você?

— Me chamo Rola-Pedra.

— Vamos ganhar a vida juntos?

— Vamos!

Foram os três andando até que pararam numa campina bonita e aí ficaram. Fizeram uma casinha de palha e todo dia, dois iam caçar e um ficava para fazer a comida num tacho bem grande. Ficou Rola-Pau e os companheiros foram para os matos.

Quando o almoço ia ficando pronto apareceu um bicho enorme roncando e pedindo todo de comer.

— Ou como o almoço ou como você!

Rola-Pau trepou-se na cocuruta da casinha, com um medo doido e o bichão devorou o almoço todo. Quando Filho da Burra e Rola-Pedra voltaram e não viram a comida, ficaram para morrer de raiva. Ficou então Rola-Pedra e, nas horas costumeiras, o bicho chegou e Rola-Pedra botou-se a ele brigando. Brigaram muito tempo e Rola-Pedra vendo que morria, largou e deu uma carreira de levantar poeira. Filho da Burra, quando chegou e não teve almoço, teve uma raiva danada.

No terceiro dia ficou ele preparando a comida. O bicho apareceu com a mesma conversa. Filho da Burra largou-lhe uma bengalada com a bengala de ferro que pegou bem no focinho do bicho e este não quis mais peleja. Ganhou os matos e Filho da Burra foi atrás, pega aqui, pega acolá, até que o bicho pulou num buraco e sumiu-se de terra a dentro. Filho da Burra marcou bem o canto e voltou para a casinha.

No outro dia veio com os dois companheiros e trouxeram o tacho amarrado numas cordas compridas. Filho da Burra meteu-se no tacho e os dois arriaram até embaixo. Lá no fundo da terra era espaçoso e tinha casas. Na primeira casa que Filho da Burra bateu apareceu uma moça bonita e disse que, pelo amor de Deus, ele fosse embora porque ali vivia uma serpente que matava toda a gente. O rapaz respondeu que viera para lutar com a serpente e matá-la. A moça explicou:

— Não pode ser. Quando ela cansa de brigar e cai para uma banda, pede pão e vinho. Come e bebe e fica de novo forte, vencendo todo o mundo.

— Pois a senhora, se quiser ficar livre, em vez de dar o vinho e o pão à serpente, dê a mim!

A moça prometeu. A serpente foi chegando, quebrando árvores e fazendo um barulho de ventania. O rapaz escondeu-se detrás da porta. A serpente foi entrando e fungando:

— Aqui me cheira a sangue real! Aqui me cheira a sangue real!

A moça dizia que não havia ninguém mas a serpente tanto procurou que viu Filho da Burra e voou em cima dele para matá-lo. Filho da Burra passou-lhe a bengala de ferro que saía fumaça. Foi uma briga que não tinha fim, até que caíram, um para cada lado, sem forças. A moça, mais que depressa, trouxe pão e vinho que a serpente estava pedindo, e deu ao rapaz que comeu e bebeu, tornando a ficar forte. Levantou-se e sentou a bengala na cabeça da serpente esbandalhando-a. A moça ficou satisfeita e disse que tinha mais duas irmãs encantadas, morando em duas casas adiante.

Filho da Burra foi para a segunda e lá a moça contou a mesma coisa. O rapaz fez a mesma proposta de comer o pão e beber o vinho e a moça aceitou. Escondeu-se e esperou o bicho-feroz que chegou como um pé-de-vento, derribando tudo:

— Aqui me cheira a sangue real! Aqui me cheira a sangue real!

A moça negou, negou, mas o bicho caçou o rapaz e o encontrou, botando-se a ele e brigando com vontade. O bicho era terrível, mas a bengala de ferro não fazia graça e os dois inimigos terminaram sem força para acabar o combate, caindo no chão os dois. O bicho pediu o vinho e o pão, e a moça foi buscar mas entregou ao rapaz que esmagou a cabeça do monstro.

Passou para a terceira casa e lá era um macacão que morava com a pobre moça. Aconteceu o mesmo. O macacão quando chegou farejando:

— Aqui me cheira a sangue real! Aqui me cheira a sangue real!

Foi procurando e achou o rapaz, partindo para cima dele. Filho da Burra enfincou-lhe a bengala com vontade. Briga lá e briga cá, até que uma bengalada raspou a cabeça do macacão e uma orelha caiu no chão. Filho da Burra agarrou a orelha e meteu-a no bolso porque o macacão sumiu-se, correndo como um condenado.

O rapaz juntou as três moças e os tesouros que elas tinham e foi para onde estava o tacho. Balançou na corda e o tacho foi puxado por Rola-Pau e Rola-Pedra, cheio de dinheiro. Depois subiram as três moças e o tacho desceu. Imaginando que os dois camaradas tivessem maldando a morte dele para ficar com as moças e o tesouro, Filho da Burra botou uma pedra bem grande no tacho e balançou a corda. Subiram o tacho até quase em cima e depois cortaram as cordas, despencando tudo para baixo.

Rola-Pau e Rola-Pedra já tinham escolhido as duas moças para noivas e acharam que deviam deixar Filho da Burra no buraco para gozarem a riqueza que tinham ganho. Foram para o reinado do pai das três moças.

Ficando lá embaixo, Filho da Burra estava meio triste quando apareceu o diabo, que era o macacão, gritando e saltando:

— Filho da Burra, me dá minha orelha!

— Não dou.

— Filho da Burra, me dá minha orelha que eu te tiro daqui!

— Tire primeiro.

O diabo virou-se numa árvore e o rapaz subiu por ela até fora do buraco. Quando ficou livre, voltou o diabo pedindo a orelha.

— Só dou a orelha se você me levar para o reinado!

— Levo. Vou me virar num cavalo e você monte, feche os olhos e só abra quando eu parar!

Virou-se num cavalo, selado, e Filho da Burra montou, fechou os olhos. Quando o cavalo parou, ele abriu e estava no reinado do pai das moças.

Rola-Pau e Rola-Pedra, numa carruagem, tinham ido casar na igreja. No palácio só ficara o rei e a princesa mais moça. Filho da Burra, quando o diabo tornou a pedir a orelha, disse que queria se encontrar dentro do palácio real:

— Feche os olhos! 

Ele fechou e quando abriu, estava no salão do rei.

Chamou o rei e contou toda a sua história. O rei não queria acreditar na malvadeza dos futuros genros. O rapaz tirou do bolso um lenço e mostrou a ponta da língua da serpente que vivia com a princesa mais velha, a orelha da fera que estava com a do meio e a orelha do macacão que prendera a caçula. O rei chamou a princesa e esta confirmou tudo. Mandaram buscar Rola-Pau e Rola-Pedra que voltaram com os convidados. Quando foram vendo Filho da Burra no salão, correram para a janela e saltaram do sobrado abaixo, quebrando a cabeça nas pedras do calçamento, morrendo imediatamente. Filho da Burra casou com a princesa mais moça e viveu muito feliz. E a orelha do macacão? O diabo recebeu e voltou para os infernos.


(Informante: Cícero Salvino de Oliveira. Alexandria, Rio Grande do Norte)

(Cascudo, Luís da Câmara. Contos tradicionais do Brasil. Belo Horizonte, Editora Itatiaia; São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 1986, p.77-80 (Reconquista do Brasil, 2ª série, v.96))


O DIABO NO FOLCLORE DO NORDESTE


Ilustração de Marcos JardimO número de agosto de Brasil Açucareiro foi uma edição quase exclusivamente sobre o folclore do nordeste. Daí a oportunidade de relembrarmos velhas lendas sobre o diabo, ao tempo em que muito se acreditava nas artimanhas do maligno.

São totalmente esquecidas, pois remontam ao tempo do Recife de fora de portas, expressão tão velha e quase desconhecida que preciso explicar aos que não encontram o seu sentido imediato. Relembra ela o tempo das portas nas cidades e das populações que viviam fora delas. Ou seja: aquilo mesmo que ainda acontece hoje, sem a existência das portas, com as classes mais bem afortunadas morando no centro da cidade e as mais desafortunadas, na periferia, no sertão ou outro nome qualquer que lhe queiram dar.

Nesta primeira lenda sobre o diabo em Pernambuco, ou melhor, no Recife, relato apenas o que ouvi na minha infância, época de vida farta e fácil, em que havia tempo para se cuidar muito da moral e da religião. Era o diabo empregado para efeitos moralistas, às vezes até mesmo sob fórmulas grosseiras. Nesta lenda simplificada, o veremos assim.
 A irmã do padre

Certo padre, recentemente formado, lutou e conseguiu sua nomeação para uma paróquia distante. Tendo como família apenas uma irmã solteira, esta se exasperou tanto com a possível mudança para o longínquo interior do estado que, às vésperas da viagem para a nova residência, foi ao auge da blasfêmia, exclamando: - Eu não vou para o mato e me caso até com o diabo, se ele aparecer esta noite!

Foi para a varanda do prédio onde morava e lá se deixou ficar. Precisamente à hora fatídica dessas coisas, a meia-noite, avistou ela, no princípio da rua, um elegante cavaleiro montado no seu ginete, cujos cascos riscavam fogo nas pedras do calçamento. Ao chegar à sua porta parou, olhou-a bem, desceu do cavalo, subiu as escadas e bateu à porta.

A irmã do padre correu para recebê-lo, vendo no fato a esperança de um casamento que não mais permitiria sua viagem para o interior do estado.

Ao abrir a porta, porém, e fitar o cavaleiro, viu nele os olhos de fogo de Satã e caiu morta.

Vê-se nesta lenda além do moralismo contra as blasfêmias, o Recife da época dos cavalos e dos cavaleiros, e onde os automóveis não eram nem sequer sonhados.
 A marca no braço

Tanto como a primeira esta outra estória remonta também à época de fora de portas. O cenário é que muda: não é mais o diabo montado no seu ginete faiscante. Lembra a época em que não havia estradas de ferro em Pernambuco. É um diabo marítimo, do tempo do apogeu das barcaças e de um Recife praieiro. É um diabo que apavora, que castiga, que rapta crianças, um precursor dos gangsters americanos, para desespero e contenção de mães que blasfemam e sobretudo de um fundo moralista e religioso.

Certa mãe impaciente pelas traquinadas do filho vai ao desespero e exclama: - Tornara que o diabo te carregue!

Dito isto vai à cozinha e ao voltar à sala nota o desaparecimento da criança. Procura pela casa toda e dá o desespero sem achar explicação para o caso.

No outro dia, porém, na hora da chegada das barcaças à rampa do cais, velhos barcaceiros que voltavam de alto mar ao passarem por determinado local ouviram choro de criança e avistaram entre pedras altas o menino desaparecido, apresentando ainda nos braços a marca terrível das unhas do diabo que o havia carregado como blasfemara a mãe ignorante de tal perigo.
 Credo

Vindo da mesma época que as anteriores, não há nesta estória nenhum fundo moralista, apenas uma demonstração de força da palavra Credo, ou seja do Creio em Deus Padre, etc. Nota-se, porém, um afeito geográfico da época das ronceiras embarcações à vela, em que Maçaió ficava tão distante do Recife que se podia envolvê-la nas lendas.

Em casa de certa família que não primava por bons costumes, improvisaram um baile. E veio a frase do dono da casa: Hoje até o diabo dança aqui!

Altas horas da noite foi reparado que um crioulão alto não perdia um número e já dançava com certa dama há tanto tempo, que esta, não suportando mais o cansaço, indagou:

- O senhor não vai parar? Será que estou dançando com o diabo? Credo!!

A essa palavra a mulher sentiu-se só na sala, sem saber como o crioulo desaparecera. Cai, de espanto, ao tempo que todos sentem um cheiro forte de enxofre.
II

Agora, não mais a lenda, mas a realidade. E o Recife das velhas carroças puxadas a boi, levando açúcar turbina e mascavado da estação de São Francisco para os armazéns da rua do Brum. É o Recife em que a chegada do trem das 5 horas da tarde era uma festa para mim. Assistia da minha janela da rua das Calçadas a passagem dos paus de papagaios que iam para as casas que os vendiam no cais da Lingueta. Dos muitos exemplares raros de orquídeas que seguiam para a Inglaterra, por não valerem nada nas nossas matas, onde eram tratadas como parasitas e implicitamente nocivas às nossas árvores. E Recife de véspera de Natal onde ficava embevecido na minha inocência de criança vendo o desfilar do cortejo das carroças enfeitadas, puxadas por velhos bois magros e ronceiros, com velhas colchas nas costas e galhos de gameleira nas carroças a guisa de grinaldas e de festões.

O diabo de hoje já não tem nenhum efeito moralista. Desmoralisou-se por completo. Aparece, porém, ainda, como uma força que só os corajosos vão procurar, nessa ânsia de resolver o problema econômico da vida. É o diabo de uma outra época.

A ânsia de encontrar o ouro criou a alquirma, ânsia de acertar a milhar no jogo do bicho criou o inesperado: a realidade confundida teimosamente com a lenda.

Procurado, em vão, por todos os recantos e encruzílliadas, um diabo que já não mete medo nem provoca receios, sofre talvez, aí, a sua última desmoralização.

Em Santo Amaro das Salinas, o velho Santo Amato dos Viveiros de peixes e dos mocambos, à meia noite em ponto, numa encruzilhada, está parada uma mulher, rezando, para que o diabo apareça e diga-lhe a milhar do bicho, dando assim solução para todo um mundo de misérias em que vive.

Na ponta da rua, lá ao longe, surge um vulto preto, totalmente preto, onde os olhos brancos se realçam e se destacam. Aproxima-se, aproxima-se, e vai passando sem dizer uma única palavra.

A mulher enche-se mais de coragem, avança até ele e fala:

- Diga a milhar, diga!

E a figura do homem que ela julgava o diabo explica-se, deixando-a desapontada:

- Minha senhora eu não sou o diabo, não! Eu sou é carvoeiro que vem do serviço!

A realidade é confundida grosseiramente com a lenda e há assim a desmoralização completa de todos os diabos que ainda amedrontam tolos e crentes.


(RIBEIRO, Chagas. Em Brasil Açucareiro)


MELANCIA E COCO MOLE

(Sergipe)

Havia um homem que gostava muito de uma moça e queria casar com ela. Um dia ele foi chamado pras guerras e disse à moça que não casasse com outro, que quando ele voltasse casaria com ela. Para ninguém desconfiar o rapaz tratava a moça por – Melancia – e a moça o tratava por – Coco Mole. Um dia se despediram muito chorosos e ele partiu para as guerras. Todo dia aparecia casamento para esta moça, porém ela não queria, com sentido no seu querido. Passados alguns anos e, aparecendo um dia um casamento, o pai da moça decidiu que ela havia de aceitar. Ela fez o gosto do pai, e, quando foi no dia do casamento, o seu namorado chegou das guerras, indagou logo pela moça e soube que ela se casava naquele mesmo dia.

O rapaz ficou muito triste e não quis comer. Um caboclo, que era pajem dele, perguntou-lhe por que estava tão triste. Sabendo da história, disse-lhe: "Não tem nada, meu amo. Deixe estar que eu arranjo tudo!!" Havia uma árvore no fundo do quintal da casa da moça, onde ela costumava ir conversar com o antigo namorado. O caboclo ensinou ao amo que fosse para debaixo da árvore, que lhe garantia que a moça iria lá ter. Ele fez o que o caboclo recomendou, e este se dirigiu para casa da noiva. Chegando lá encontrou já todos os convidados, o noivo e a noiva já preparados, só faltando o padre para os casar. O caboclo pediu licença para fazer uma saúde à noiva, chegou-se para junto dela e disse:

"Eu venho lá de tão longe
Corrido de tanta guerra
Melancia, Coco Mole
É chegado nesta terra"

Todos bateram palma e disseram: "Bravo! Caboclo, faça outra saúde". O caboclo retrucou:

"Não há bebida tão boa
Como seja o aluá
Melancia, Coco Mole
Vos espera no lugar

Todos bradaram: "Muito bem! Caboclo!… faça outra saúde!"

O caboclo entusiasmado continuou:

"Moça, que estais tão bonita
Não vos lembrais do passado
Melancia, Como Mole
Vos manda muito recado"

Aí a moça levantou-se e disse que ia beber água. Saiu caladinha pela porta do quintal e foi direitinho à árvore onde ela costumava ir conversar com seu antigo namorado, que era o do peito. Chegando aí, encontrou-o e ao mesmo tempo a um padre que já ali se achava apalavrado para os casar.


(ROMERO, Sílvio. Contos populares do Brasil)


AS PERGUNTAS DE DOM LOBO


Um moço trabalhador e direito morava com sua mãe, labutando pela vida com muita dificuldade. Uma feita disse:

- Minha mãe! Não podemos pssar o resto da vida nesta miséria, quase sem ter o que comer. Fique minha mãe com o roçado, as cabeças de ovelhas, e bote sua benção que vou pelo mundo ver o que posso fazer.

A mãe abençoou-o e o rapaz foi-se embora pelo mundo. Onde chegava, trabalhava uma semana e ia para diante. Tempos depois chegou a um reinado bonito mas sem gente. As ruas limpas de povo, as casas fechadas, tudo calado, sem um choro de menino ou voz de homem, parecia um descampado. O rapaz procurou a casinha de um velho e pediu agasalho. O velho recebeu-o muito bem e deu de cear. Quando estavam comendo o rapaz perguntou por que o reinado era assim triste. O velho explicou que, por mal dos pecados do povo, aparecera ali um homem encantado, de nome Dom Lobo, dono de um palácio, que botara para obrigação comer o coração de uma pessoa todo dia. Pega a criatura e faz três perguntas. Se a criatura responder, pode fazer outras três a Dom Lobo, mas não nasceu ainda esse cristão para adivinhar as perguntas de Dom Lobo. Não responde e Dom Lobo mata e come o coração dos pobres. Por isso é que toda a gente vivia escondida e tremendo de medo.

O rapaz dormiu e na manhã do outro dia saiu para a rua perguntando onde era o palácio de Dom Lobo. O povo ficava espantado com o atrevimento dele mas ensinava. O moço chegou perto de umas pedras grandes e lá em cima estava o palácio que era um monarca de grande, por um portão de ferro. O rapaz tocou-se para o palácio com coragem. Chegou, bateu, e as portas se abriram por si mesmo. O moço enfiou-se por dentro, sobe aqui, desce ali, até que chegou num salão que era uma beleza. Aí apareceu Dom Lobo, um homem alto, forte como um touro, todo cabeludo, com olhos de gato e uns dentes de onça-tigre. Quando viu o rapaz deu uma gargalhada de estrondar o mundo. Falou, com voz grossa de bicho encantado, mandando o rapaz sentar. Depois perguntou:

- Que é que tanto mais velho mais forte fica?

- É o vinho, - respondeu o moço

- Que é que tanto se tira mais fica?

- Água do mar!

- Qual é o lugar onde todos vão e ninguém quer ir?

- O cemitério!

- Acertou, cabra danado! Faça as três perguntas que quiser!

- Quem é que nasceu de uma virgem, batizou-se num rio e morreu numa cruz?

O homão rangeu os dentes como um desesperado porque não podia dizer o santo nome de Jesus Cristo. Deu um estouro que estremeceu tudo e subiu aquela bola de fumaça cobrindo o mundo. Quando clareou, o rapaz estava em cima das pedras. O palácio e Dom Lobo tinham se sumido. O povo estava todo reunido batendo palmas e levou o moço em charola para o rei. Deram uma casa com todos os preparos, fazenda de gado, muito dinheiro. O rapaz mandou uma carrugem buscar sua mãe e viveu muito bem e satisfeito.


(CASCUDO, Luís da Câmara. Contos tradicionais do Brasil)

O PREGUIÇOSO E O PEIXINHO


Havia um sujeito muito pobre que tinha muitos filhos. O caçula era preguiçoso, que só visto, muito amarelo e barrigudo. Todos os dias de tarde quando iam buscar água e lenha, o amarelo mais os irmãos passavam por defronte do palácio do rei. Um dia, estando a maré cheia, o amarelo, em vez de acompanhar os irmãos, tendo visto uns peixinhos dentro de uma poça, no mangue, pôs-se a pelejar para pegar um deles. A filha do rei, que estava na janela, começou a gritar:

- Preguiçoso, vai ajudar teus irmãos!…

Afinal, o amarelo conseguiu pegar um peixinho que começou a forcejar por se lhe escapulir das unhas. Quando viu que não podia, disse:

- Me larga, que tudo quanto tu desejares eu te dou. Quando quiseres qualquer cousa basta que digas – com os poderes de Deus e do meu peixinho eu quero isto – que tu logo terás.

O amarelo soltou o peixe.

Continuou a princesa, da janela, a mangar dele, chamando empapuçado, barriga d’areia, etc. O rapazinho ficou tão aborrecido com aquilo, que disse baixinho:

- Com os poderes de Deus e do meu peixinho, tu hás de parir um filho meu, sem tu saberes.

E foi andando, um pé hoje, o outro amanhã, o bucho enorme, de comer barro, em busca dos irmãos, que com certeza já estavam de volta.

Daí a dias está a princesa pálida, magra, dores aqui, dores ali; e cada vez pior. Toca o rei a mandar tudo quanto era médico do reinado e todos a dizerem que ela não tinha moléstia nenhuma. Afinal, quando chegou o tempo, a moça pariu um menino muito gordinho e bonitinho. O rei ficou furioso a ponto de falar em mandar degolar a filha, metendo-a em confissão para ela dizer que homem era que tinha ido ao seu quarto. A moça respondeu que nenhum. Não houve forças humanas que a fizessem dizer outra coisa.

Vendo o rei que da boca da filha nada colheria, reuniu os seus conselheiros para que eles lhe dizessem o que se havia de fazer a fim de saber quem era o pai de seu neto. Depois de muita discussão, os conselheiros resolveram que se deveria esperar que o menino estivesse engatinhando, para se tirar a prova.

Quando a criança começou a engatinhar, os conselheiros disseram ao rei que mandasse chamar todos os homens do reinado para irem à presença do menino. Aquele para quem este se botasse, seria seu pai. Foi uma romaria de homens ao palácio, durante semanas e semanas, vindos de todas as partes do reinado, que Deus nos acuda. Primeiro vieram os príncipes, depois os fidalgos, depois os arremediados e, de resto, os pobres, - velhos, moços e meninotes, - sem que a criancinha nem sequer se importasse com um só deles.

Por fim, faltava apenas o preguiçoso. Quando os criados do rei foram chamá-lo, seu pai achou muita graça, dizendo: 

- Ora, havia de ser mesmo bonito que este papa-cinza fosse o pai do príncipe. Era mais fácil as galinhas criarem dentes! Vocês não estão vendo logo que isto não pode ser?

- Não sabemos de nada, responderam os criados. É ordem de sua majestade, portanto ele tem de ir.

Lá se foi o amarelo por ali a fora, com a barriga em termo de arrebentar, e as canelas fouveiras de polia, atrás dos criados. Em caminho o amarelo disse consigo mesmo:

- Com os favores de Deus e do peixinho, quero me transformar num moço bem bonito e bem vestido.

Num instante ele se transformou. Que quando os criados foram olhar para trás ficaram muito admirados, pensando que o amarelo tinha se escapulido e aquele era outra pessoa. Mas o rapaz disse:

- Estão admirados? Pois eu sou o amarelo mesmo.

Chegando ao palácio, estava muita gente dentro da sala onde se encontrava a criança, todos prontos para se rirem à custa do preguiçoso. Vendo-o o rei exclamou:

- É este que vocês dizem ser o amarelo e sujo?, e que eu vejo tão corado e tão lorde assim?

- Saberá vossa real majestade, responderam os criados, que ele saiu de casa amarelo, com uma barrigona e sujo, que fazia nojo; mas, quando vínhamos no caminho, que fomos olhar para trás, pra ver se ele nos estava acompanhando, ele estava desse jeito.

Então o rei mandou que ele entrasse para onde estava o menino. A criancinha achava-se no fundo da sala. Quando o preguiçoso apareceu na porta, ela veio engatinhando depressa, chegou, abraçou-se com as pernas dele e pôs-se em pé. O rapaz, aí, tomou-a nos braços. Foi uma admiração geral. O rei ficou apalermado, perguntando como tinha sido para ele entrar na camarinha da princesa. Respondeu o moço que nunca tinha entrado na camarinha dela. O rei não acreditou, nem ninguém que estava ali. Já zangado com aquilo, mandou o rei, debaixo de pena de morte, que ele confessasse como tinha sido para emprenhar a princesa. Não tendo outro jeito senão obedecer, o preguiçoso mostrou-lhe um anel de brilhante que trazia, dizendo ao rei que se achava um pouco afastado:

- Vossa majestade está vendo este anel? Pois bem, procure ele que está no seu bolso.

E ajuntou consigo:

- Com os favores de Deus e do meu peixinho, quero que este anel passe para o bolso do rei.

O rei meteu a mão no bolso e achou o anel. Ficaram todos de boca aberta, admirados. Disse o preguiçoso, então, que tinha sido assim que a princesa tivera um filho seu, sem ele ter estado com ela. Aí, o rei mandou correr banhos e casou o preguiçoso com a filha, vivendo os dois muito felizes por muitos anos.

(CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura oral no Brasil)


QUEM TE MATOU?


Um homem, certo dia, saiu da cidade andando a pé, e junto a uma porteira, longe de habitações, deu com uma caveira feia como só podem ser a morte e o pecado.

Levianamente, deu-lhe um pontapé e caçoou:

- Quem te matou, caveira?

Mas qual não foi o seu espanto, quando, com um estalar dos ossos muito brancos, lavados de chuva e estorricados ao sol, a caveira respondeu:

- Foi a língua.

O pavor o sacudiu com ímpeto. Saiu por ali afora numa doida carreira, e dentro de pouco tempo estava novamente na cidade. Na sua excitação, contou a toda gente o que lhe acontecera.

– Não pode ser – diziam.

– Foi. Juro. Eu vi. Eu ouvi. Junto a uma porteira.

– Uma caveira falando? Alucinação, meu amigo.

– Verdade.

Alguns acreditavam, outros não. A maioria, não. Mas a notícia correu a cidade, cercou-a, voou até o palácio do rei.

O rei mandou chamar o moço.

– Que história é essa?

O moço contou tudo, ainda se arrepiando de se lembrar do susto.

– Ela respondeu, juro, majestade.

O rei se desencostou do trono e, com um dedo em riste, sacudindo-o diante do nariz do moço, falou:

- Vou lá ver isso. Sou curioso. Mas veja lá, se for mentira sua, e você me fizer bancar o bobo, eu te mando pendurar na primeira árvore que encontrarmos.

– Foi verdade, majestade – murmurou o moço.

Aprestara, então, um grande cortejo. Ia adiante o rei no seu cavalo branco, ricamente ajaezado, com aperos de ouro e prata. E depois, os nobres, suntuosamente vestidos. E os soldados. Tudo aquilo fulgia ao sol. Bem adiante, caminhava o moço a pé, com as mãos amarradas. Tudo estacou junto à porteira. Parecia uma festa. Os que riam e caçoavam calaram-se ao ver a caveira, tão maligna parecia. Trêmulo, o moço perguntou:

- Quem te matou, caveira?

A caveira quieta estava e quieta ficou.

O moço pensou que talvez tivesse faalado muito baixo. Em voz mais alta, mas insegura, interpelou novamente:

- Quem te matou, caveira?

E a caveira, quieta.

– Quem te matou, caveira? – gritava agora, com os olhos esbugalhados, saltadas as veias do pescoço, e um pavor infinito apertando-lhe o coração.

– Quem te matou, caveira? Quem te matou, caveira?

E a caveira muito branca, luzindo ao sol, em silêncio. O moço perdeu a cabeça, começou a dar-lhe pontapés, o golpe soava cavo, e ele ia atrás dela novamente, de um para outro lado, suando, rugindo.

– Quem te matou, caveira?

Apanharam-no, veio o carrasco no seu camisolão vermelho, fez o nó corrediço com dedos ágeis, e o moço ficou enforcado numa árvore à beira do caminho, enquanto a comitiva voltava, aparatosa mas sem animação, para a cidade.

Ficou tudo em silêncio, no campo. Não passava vivalma. Decorreram as horas quentes do dia, anoiteceu. Quando se adensaram as primeiras sombras, aconteceu uma coisa extraordinária. A caveira, que não parecia dotada de movimento, rolou um pouco sobre si mesma e veio, aos pulos. Pulou até chegar sob a árvore onde estava o enforcado. E ali, com o feio buraco das órbitas vazias virado para cima, perguntou: 

- Eu não te falei que quem te matou foi a língua?

(In ROMERO, Sílvio. Folclore brasileiro; contos populares do Brasil)


Os três coroados

Colhida por Sílvio Romero em Sergipe

Foi um dia, havia três moças já órfãs de pai e mãe. Uma vez, elas estavam todas três na sacada do seu sobrado, quando viram passar o rei. A mais velha disse: “Se eu me casasse com aquele rei, fazia-lhe uma camisa como ele nunca viu”. A do meio disse: “Se eu me casasse com ele, lhe fazia uma ceroula como ele nunca teve”. A caçula disse: “E eu, se me casasse com ele, paria três coroados”.

O rei ouviu perfeitamente a conversa, e, quando foi no dia seguinte foi ter à casa das moças e lhes disse: “Apareça a moça que disse que, se se casasse comigo, paria três coroados”. A moça apareceu, e o rei levou-a e casou-se com ela. As irmãs ficaram com muita inveja, mas fingiram não ter.

Quando a moça apareceu grávida, as irmãs meteram-se dentro do palácio, com aparências de ajudá-la em seus trabalhos. Aproximando-se o tempo de dar a rainha à luz, as suas irmãs se ofereceram para servi-la e dispensar a parteira. Chegado o dia, elas muniram-se de um sapo, uma cobra e um gato. Quando nasceram os três coroados, elas os esconderam dentro de uma boceta, e mandaram largar no mar. Apresentaram então ao rei os três bichos, dizendo: “Aí estão os coroados que aquela impostora pariu.” O rei ficou muito desgostoso e mandou enterrar a mulher até aos peitos, perto da escada do palácio, dando ordem a quem por ali passasse para cuspir-lhe no rosto.

Assim se fez. Mas um velho pescador encontrou no mar a boceta, apanhou-a e abriu e encontrou os três meninos ainda vivos e muito lindinhos. Ficou muito alegre, e levou-os para casa para criar. A velha, sua mulher, se desvelou muito no trato das crianças. Quando estas cresceram, a ponto de poderem ir para a escola, foram e passavam sempre pelo palácio do rei.

As cunhadas dele viram, por vezes, passar os meninos e os conheceram. Um dia os chamaram, e se puseram com muitos agrados com eles, e lhes deram de presente três frutas envenenadas, a cada um a sua. Os meninos comeram as frutas, e viraram todos três em pedra. Os velhos ficaram muito aflitos com aquilo, e toda a cidade falou no caso.

Mas a velha, que era adivinha, disse ao marido: “Não tem nada; eu vou à casa do Sol buscar um remédio para as três pedras virarem outra vez em gente”. Partiu montada a cavalo.

Depois de andar muito tempo, encontrou um rio muito grande e bonito. O rio lhe disse: “Ó minha avó, aonde vai? “ A velha respondeu: “Vou à casa do Sol para ele me ensinar que remédio se deve dar a quem virou pedra para tornar a virar gente”. O rio lhe disse: “Pois então pergunte também a ele a razão por que, sendo eu um rio tão bonito, grande e fundo, nunca criei peixe”. A velha seguiu. Adiante encontrou um pé de fruta muito copado e bonito; mas sem uma só fruta. Ao avistar a velha, a árvore disse: “Aonde vai, minha velhinha?” “Vou à casa do Sol buscar um mezinha para gente que virou pedra”. “Pois pergunte a ele a razão por que, sendo eu tão grande, tão verde e tão copada, nunca dei uma só fruta...” A caminheira seguiu. Depois de andar muito, passou pela casa de três moças, todas três solteiras e já passando da idade de casar. As moças lhe disseram: “Aonde vai, minha avó?” A velha contou aonde ia. Elas lhe pediram para indagar do Sol o motivo por que, sendo elas tão formosas, ainda não tinham casado. A velha saiu e continuou a caminhar.

Ainda depois de muito tempo é que chegou à casa da mãe do Sol. A dona da casa recebeu-a muito bem; ouviu toda a sua história e encomendas que levava, e escondeu-a, em razão de seu filho não querer estranhos em sua casa, e quando vinha era muito zangado e queimando tudo. Quando o Sol chegou, vinha desesperado e estragando tudo o que achava: “Fum... aqui me fede a sangue real!... aqui me fede a sangue real...” “Não é nada, não, meu filho, é uma galinha que eu matei para nós jantar”.

Assim a mãe do Sol o foi enganando, até que ele se aquietou e foi jantar. Na mesa da janta sua mãe lhe perguntou: “Meu filho, um rio muito fundo e largo por que é que não dá peixe?” “É porque nunca matou gente”. Passou-se um pouco de tempo e a velha fez outra pergunta: “E uma árvore muito verde e copada, por que é que não dá fruta?” “Porque tem dinheiro enterrado em baixo.” Pouco tempo depois outra pergunta: “E umas moças bonitas e ricas por que não casam?” “Porque costumam mijar para o lado em que eu nasço”. Deixou passar mais um tempinho e perguntou: “E qual será o remédio para gente que tiver virado pedra?” Aí o Sol enfadou-se e disse: “O que querem dizer hoje estas perguntas?’ A mãe respondeu: “Vivo aqui sozinha, me ponho a imaginar estas tolices”. O Sol foi e respondeu: “O remédio é tirar da minha boca, quando eu estiver comendo, um bocado e botar em cima da pedra”.

A velha, daí a pouco, fingiu um espanto, levou a mão à boca do Sol e tirou o bocado, dizendo: “Olha, meu filho, um cisquinho na comida!” E guardou o bocado. Daí a pedaço a mesma cousa: “Olha um cabelo, meu filho”! E escondeu mais um bocado. Numa terceira vez, ela fez o mesmo e o Sol se levantou aborrecido, falando: “Ora, minha mãe, seu de comer hoje está muito porco; não quero mais”. Deitou-se e no dia seguinte foi-se embora para o mundo. Sua mãe foi à velhinha que estava escondida, e lhe contou tudo, dando os três bocados. A velha pôs-se a caminho para trás. Passando por casa das moças, aí dormiu, sem querer dizer a razão por que elas não casavam. No dia seguinte, bem cedo, ela levantou-se e as moças também. Elas correram logo para o lugar onde costumavam urinar, voltadas para o nascer do sol. A velha as repreendeu dizendo: “É esta a razão de vocês não casarem; percam este costume de mijar para a banda de onde o sol nasce”. As moças assim fizeram e logo acharam casamento. A andadeira tomou o seu caminho e foi-se embora a toda pressa. Chegando na fruteira, pôs-se debaixo dela a cavar sem dizer nada; quando puxou um grande caixão, então disse por que a fruteira não dava frutas. O pé de árvore começou logo a carregar que parecia praga. A velha seguiu. Ao chegar ao rio, ele lhe indagou do seu recado: “Logo lhe digo”; e a velhinha foi passando depressa. Quando se viu bem longe, gritou: “É porque você nunca matou gente”. O rio botou logo uma enchente tão grande, que por um triz não matou a velha. Afinal foi ela ter em casa. Sem mais demora aplicou os três bocados em cima das três pedras, e os meninos se desencantaram.

A notícia destas cousas chegou aos ouvidos do rei. Ele mandou um dia convidar o velho com os três meninos para jantarem em palácio. O velho não quis ir, nem mandar os meninos; o rei o intimou, até que foram os meninos. Mas a velha ensinou aos meninos: “Quando vocês lá chegarem, meus filhinhos, que passarem pela escada, se ponham de joelhos e tomem a bênção àquela mulher que lá está enterrada parecendo um cadáver, porque é a mãe de vocês. Na janta não queiram ir para a mesa sem que o rei mande desenterrá-la e botar também na mesa. Quando ele der a cada um o seu prato, não comam e dêem todos três a ela, que os há de devorar num instante, pois está morta de fome. Aí as duas moças que lá têm, que são tias de vocês, hão de dizer: “Que barriga de monstro que cabe três pratos de uma vez!” A isto vocês respondam tirando os bonés e dizendo: “Não é de admirar que caibam três pratos de comida, quando coube três coroados!” e mostrem ao rei as cabeças. Assim foi: os meninos executaram fielnente as recomendações da velha. (Todas as cousas se repetiram pela forma indicada pela velha adivinha, com grande surpresa para o rei e desapontamento para as duas infames malfeitoras). Tudo acabado, o rei, que ficou vivendo com sua mulher, que voltou à sua antiga beleza, e os seus filhinhos, em palácio, perguntou-lhes o que queriam que ele fizesse às duas danadas. Os meninos responderam que “ele mandasse buscar quatro burros bravos e as amarrasse nos rabos.” Assim fizeram, e elas morreram lascadas ao meio.

(Romero, Sílvio. Contos populares do Brasil. Rio de Janeiro, Livraria José Olímpio Editora, 1954. Coleção Documentos Brasileiros, 3)


AS TRÊS VELHAS 




Uma viúva tinha uma filha muito bonita e religiosa que agradava a toda a gente. A viúva queria casar a filha com homem rico e para isso fazia o possível. Na esquina da rua onde moravam as duas havia uma casa de comércio afreguesada, cujo dono era solteiro e de posses. A viúva fazia as compras nessa casa e vivia estudando um meio de conseguir fazer com que o homem conhecesse e simpatizasse com sua filha. 

Um dia ouviu-o dizer que só se casaria com uma moça trabalhadeira e que fiasse muito mais do que todas na cidade. A viúva comprou logo uma porção de linho, dizendo que era para a filha fiar, e que esta era a melhor fiandeira do mundo. 

A moça ia todas as madrugadas à missa das almas e encontrava lá três velhas muito devotas que a cumprimentavam. 

A viúva chegando a casa entregou o linho à moça, dizendo que teria de fiá-lo completamente até a manhã seguinte. A moça se valeu dos olhos, chorando, e foi sentar-se no batente da cozinha, rezando, desconsolada da vida. Estava nesse ponto quando ouviu uma voz perguntar. 

— Chorando por quê, minha filha? 

Levantou os olhos e viu uma das três velhinhas da missa das almas. 

— E não hei de chorar? Minha mãe quer que eu fie todo esse linho e o entregue dobado amanhã de manhã... 

— Não se agonie, minha filha. Se você me convidar para seu casamento e prometer que três vezes me chamará tia, em voz alta, darei uma ajuda. 

A moça prometeu. A velha despediu-se e foi embora, deixando o monte de linho fiado e pronto. A viúva, quando achou a tarefa pronta, só faltou morrer de satisfeita. Correu até a loja do negociante, mostrando as habilidades da filha e pediu uma porção ainda maior de linho. O negociante espantado pelo trabalho da moça não quis receber dinheiro pela compra. 

Vendo que as cousas se encaminhavam como ela desejava, a viúva voltou a dar o linho pra a filha fiar até a manhã seguinte. Novamente a moça se agoniou muito e foi chorar na cozinha. Novamente apareceu uma velha, a segunda das três, que lhe propôs ajudá-la se ela a convidasse para o seu casamento e a chamasse tia por três vezes. A moça aceitou e o linho ficou pronto num minuto. 

A viúva voltou correndo à loja do homem rico, mostrando o linho fiado e gabando a filha. O negociante estava simpatizando muito com a moça que fiava tão depressa e tamanhas qualidades. A viúva voltou com uma carga de linho enorme, entregando aquela penitência à sua filha. 

Aconteceu como nas outras vezes. A terceira velha, mediante convite para o casamento e chamá-la tia três vezes, fiou o linho num rápido. 

Quando o negociante viu o linho fiado, pediu para conhecer a moça, conversou com ela e acabou falando a casamento. Como era de agradável presença, a moça aceitou e marcou-se o casamento. O homem mandou preparar sua casa com todos os arranjos decentes e encheu uma mesa de fusos, rocas, linhos, tudo para que a mulher se ocupasse durante o santo dia em fiar. 

Depois do casamento, na hora do jantar, estavam todos reunidos e muito alegres, quando bateram palmas e entrou uma das três velhas da missa das almas. A noiva correu logo dizendo: 

— Que alegria, minha tia! Entre, minha tia, sente-se aqui perto de mim, minha tia. 

Assim que a velha sentou na cadeira, chegou a outra, recebida com a mesma satisfação: 

— Entre minha tia! Sente-se aqui, minha tia! Vai jantar comigo, minha tia! 

A terceira velha chegou também e a noiva abraçou-a logo: 

— Dê cá um abraço, minha tia! Vamos sentar, minha tia! Quero apresentá-la ao meu marido, minha tia! 

Foram para o jantar e o marido e convidados não tiravam os olhos de cima das três velhas que eram feias como o pecado mortal. 

Depois do jantar, o marido não se conteve e perguntou por que a primeira era tão corcovada, a segunda com a boca torta e a terceira com os dedos finos e compridos como patas de aranhas. As velhinhas responderam: 

— Eu fiquei corcunda de tanto fiar linho, curvada para rodar o fuso! 

— Eu fiquei com a boca torta de tanto riçar os fios de linho quando fiava! 

— Eu fiquei com os dedos assim de tanto puxar e remexer o linho quando fiava! 

Ouvindo isso o marido mandou buscar os fusos, rocas, meadas, linhos, e tudo que servisse para fiar, e fez com que queimassem tudo, jurando a Deus que jamais sua mulher havia de ficar feia como as três tias fiandeiras por causa do encargo de fiar. 

Depois, as três velhas desapareceram para sempre. O casal viveu muito feliz. 

(Cascudo, Luís da Câmara. Contos tradicionais do Brasil. Belo Horizonte; São Paulo, Itatiaia, Editora da Universidade de São Paulo, 1986. Reconquista do Brasil, 2ª série, 96, p.158-159) 



A onça e o bode


O Bode foi ao mato procurar lugar para fazer uma casa.  Achou um sítio bom.  Roçou-o e foi-se embora.  A Onça que tivera a mesma ideia, chegando ao mato e encontrando o lugar já limpo, ficou radiante.  Cortou as madeiras e deixou-as no ponto.  O Bode, deparando a madeira já pronta, aproveitou-se, erguendo a casinha.  A Onça voltou e tapou-a de taipa.  Foi buscar seus móveis e quando regressou encontrou o Bode instalado.  Verificando que o trabalho tinha sido de ambos, decidiram morar juntos.

Viviam desconfiados, um do outro.  Cada um teria sua semana para caçar.  Foi a Onça e trouxe um cabrito, enchendo o Bode de pavor.  Quando chegou a vez deste, viu uma onça abatida por uns caçadores e a carregou até a casa, deixando-a no terreiro.  A Onça vendo a companheira morta, ficou espantada:

— Amigo Bode, como foi que você matou essa onça?

— Ora, ora… Matando!… Respondeu o Bode cheio de empáfia.  Porém, insistindo sempre a Onça em perguntar-lhe como havia matado a companheira, disse o Bode:

— Eu enfiei este anel de contas no dedo, apontei-lhe o dedo e ela caiu morta.

A Onça ficou toda arrepiada, olhando o Bode pelo canto do olho.  Depois de algum tempo, disse o Bode:

— Amiga Onça, eu lhe aponto o dedo…

A Onça pulou para o meio da sala gritando:

— Amigo Bode, deixe de brinquedo…

Tornou o Bode a dizer que lhe apontava o dedo, pulando a Onça para o meio do terreiro.  Repetiu o Bode a ameaça e a onça desembandeirou pelo mato a dentro, numa carreira danada, enquanto ouviu a voz do Bode:

— Amiga Onça, eu lhe aponto o dedo…

Nunca mais a Onça voltou.  O Bode ficou, então, sozinho na sua casa, vivendo de papo para o ar, bem descansado.



Em: Contos tradicionais do Brasil (folclore), Luís da Câmara Cascudo, Rio de Janeiro, Edições de Ouro: 1967

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Este conto foi arrebanhado por Câmara Cascudo do volume de J da Silva Campos, Contos e fábulas populares da Bahia, em Folk-Lore no Brasil, Ed. Basílio de Magalhães, Rio de Janeiro, 1928.

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